Pergunte às pessoas o nome de um poeta. Citarão vários. Carlos Drummond de Andrade provavelmente será o mais citado. Mas também Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Manoel de Barros, Cora Coralina. O microcosmo da poesia, para o homem e a mulher comuns, é habitado por estes modernistas e modernos. Só o mais aficionado em poesia poderia citar o poeta sobre o qual jogamos luz hoje: Affonso Ávila.
Affonso Celso Barros de Ávila e Silva nasceu em 1928 em Belo Horizonte, Minas Gerais, mas se considerava cidadão de Itaverava, na região central do estado. À época em que o documentário era feito, residia na Rua Cristina, número 1300, na mesma cidade em que nascera. A morte, em 2012, conforme somos informados pela diretora-narradora, o abateu no auge do processo criativo e foi sentida por muitos.
Escritor autodidata e avesso às Academias de Letras, sua obra é marcada por repetições mudando o sentido a cada verso, bem como por jogos de palavras que se assemelham sobretudo pela sonoridade, fortemente influenciado pelo Barroco. Seus poemas são lidos, por ele mesmo ou por outrem – incluindo a atriz Vera Holtz –, em longas sequências do filme.
Fizemos uma entrevista com a diretora, roteirista e produtora executiva do documentário, Eleonora Santa Rosa, que é também especialista em desenvolvimento de projetos culturais, intelectual e escritora. Mas antes, um poema desta que vos escreve, mas ao estilo de Affonso Ávila:
O poeta escreve a duras penas
O poeta escreve e adula as penas
O poeta escreve e é dura a pena
O poeta escreve e dura, apenas.
Agora sim, a entrevista:
Autoproclamado tímido e arredio, Affonso conta que foi o quinto de nove irmãos, e o único filho homem. Como esta criação cercado por mulheres pode ter afetado sua personalidade?
Com certeza não há como sair incólume, em termos de criação, em uma casa marcadamente feminina, com oito irmãs. Como ele mesmo diz no documentário, foi superprotegido por sua mãe, um menino introspectivo, sensível, cuja infância não deixou saudades e que, desde cedo, por determinação do pai, teve de trabalhar duro e muito. Sem dúvida, o poeta sempre foi um admirador incondicional das mulheres, em sua poesia há inúmeros exemplos dessa relação amorosa, sensual, afetiva, erótica, sempre renovada. Um dos poemas mais emblemáticos dessa ligação umbilical está no Discurso da Difamação do Poeta, TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COISA AMADA, que reproduzo abaixo:
É falado sobre a tragédia que se abateu sobre a geração do poeta com o golpe militar de 1964. Quão importante é o resgate de Affonso como voz num momento como o atual, com ascensão da extrema direita e gente pedindo pela ditadura?
Fundamental! Affonso nunca abriu mão de sua posição crítica, de compromisso com a mudança e a transformação da realidade nacional, desde os primórdios de sua carreira literária e, mais especialmente, a partir de 1954, quando toma consciência maior da participação ativa frente aos desafios políticos e sociais. Importante lembrar a sua iniciativa de fundação da revista Tendência, com mais alguns companheiros geracionais, em fins dos anos 50, em torno de um projeto de uma literatura participante, de um nacionalismo crítico, já no ambiente altamente politizado pré-golpe de 64. A partir sobretudo da relação de Affonso com os poetas concretos (Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari,) inicia-se o diálogo Tendência-concretismo, por meio da revista Invenção, editada pelos poetas paulistas. Buscou-se, na ocasião, de fato, a tentativa de formação de uma frente única nacional de vanguarda.
Como bem apontou o professor Antônio Sergio Bueno, crítico e ensaísta da UFMG, em brilhante texto sobre a trajetória intelectual do poeta:
“A poesia de Affonso responde a uma demanda daquele momento histórico: dar uma resposta estética à realidade social e política brasileira. O poeta, então, procura conjugar empenho ideológico e experimentação linguística.
Um dos livros em que a sátira se mostra mais acirrada, nessa obra poética, é Código de Minas (1963 – 1967). A voz poética ataca o poder econômico e político no terreno que mais dá a ele sustentação: os modos de dizer, as frases-feitas, revolvendo o chão das coisas ditas e repetidas.
O livro seguinte, Código Nacional de Trânsito (1971 – 1972), o jogo contra o jugo assume extensivo sentido de rebelião contra a opressão, figurada, nesse livro, por um código. O tom imperativo dos verbos (“não ultrapasse”, “dirija com cuidado”, “não pare na pista”) era o mesmo tom autoritário do regime ditatorial. Um verso como “conserve-se à direita” contém uma alusão velada de censura à “esquerda” como orientação ideológica. Mantém-se o princípio técnico da serialização. A leve alteração de uma sílaba basta para nos tirar do entorpecimento provocado por qualquer repetição:
dentro da faixa fora do perigo
dentro da fauna fora do perigo
dentro da farsa fora do perigo
dentro do falso fora do perigo
dentro do fácil fora do perigo
Os dois últimos versos valem tanto para os planos existencial, social e político, quanto para o plano artístico. Não seria essa legalidade invasora da vida uma prefiguração da judicialização da política nos nossos dias? Poeta-profeta.”
O texto do professor Antônio Sérgio exemplifica bem a força política e a contemporaneidade da poesia de AA. Poesia de lucidez, potente e necessária, sempre!
A poesia de Affonso Ávila é bastante singular, em comparação com outros poetas, algo que todos, inclusive ele, notam. Existiria algum que você conseguiria dizer: “se você gosta da escrita de fulano, vai gostar da escrita de Affonso”?
Embora Affonso seja, realmente, um poeta único, inimitável, sua poesia converge e se alimenta de poetas como João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, para destacar dois grandes nomes de sua predileção.
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O documentário sai mais de 12 anos após a morte de Affonso. Quando você começou a se debruçar sobre o material gravado e o que mais demorou no processo de levar a poesia dela para as telas?
Passei por inúmeros atrasos e obstáculos, inicialmente, eu seria responsável pela produção do filme. No entanto, em função de uma série de reviravoltas no processo de viabilização de patrocínios, de montagem da equipe originalmente prevista e de outras questões que não cabe aqui discorrer, por fim, a partir de sugestão feita por Carlos Adriano, cineasta paulista que havia convidado para dirigir o documentário, e por Marcelo Braga, meu parceiro nas filmagens e amigo de longa data, acabei assumindo a tarefa de direção do documentário, não só pela intimidade com o material gerado e com a poesia de Affonso (convivemos por 31 anos no universo familiar e de trabalho), como também por minha visão da estrutura preliminar do filme e seu encadeamento.
Submergi por um ano na releitura de toda a obra poética de AA, nos registros das filmagens que fizemos em sua casa, na rua Cristina 1300, em BH, em Ouro Preto e no estúdio de gravação, na pesquisa da fortuna crítica dedicada à sua produção e no levantamento do vasto material de imprensa e outros documentos a seu respeito. Como resultado, elaborei o argumento original e o roteiro final com a estruturação dos eixos, a seleção de poemas apresentados e as falas do poeta, assumindo também a narração do filme.
A captação de recursos foi demorada, passamos pela pandemia, enfrentamos o descrédito de projetos na área da cultura em pleno governo negacionista, enfim, uma série de problemas, os quais fomos superando um a um.
Sem dúvida, um dos maiores e mais inesperados desafios da minha vida profissional.
Trailer do documentário:
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