“Vai passar” é uma frase dita em Manas, filme de Marianna Brennand que aborda a violência de gênero na Amazônia. Duas palavras que simbolizam o pragmatismo que se tornou necessário para a sobrevivência das mulheres da região e, para Tielle, protagonista da obra, a confirmação de que a ajuda não virá; seu sofrimento é matéria comum na região, e a única saída para o abuso é tolerar a situação.
“Vai passar” não é dito em Canina, mas também está no centro da narrativa, não como sinal da crueldade que cerca sua protagonista, a mãe sem nome interpretada por Amy Adams, mas, sim, como conforto ou um anestésico diante das atribulações encaradas pela maternidade. A obra de Marianne Heller, baseada no livro de Rachel Yodel, parece, a todo momento, evitar trazer qualquer desconforto que seja para o público, seja masculino ou feminino. A montagem não se permite deixar as estranhezas da trama terem espaço; tudo acontece muito rápido.
Por um lado, isso torna a obra bastante ágil e ajuda com algumas piadas, especialmente às custas de Scoot McNairy, que interpreta o simpático, mas frouxo, marido da protagonista, cujo espanto diante das atividades rotineiras da companheira é sempre engraçado. A edição rápida diante dos seus pedidos pelas tarefas mais simples evidencia sua incapacidade e o impacto que isso tem na esposa.
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Apesar da graça, o que pesa em Canina é o conformismo. No longa, a Mãe (Adams), uma artista que largou a carreira para ser dona de casa e cuidar do filho, começa a sentir as consequências de sua escolha, que se expressam de modo inusitado: ela está gradualmente se transformando em um cachorro.
Bizarro, de fato, mas o filme parece ter medo de se aproximar desse aspecto de forma que possa gerar algum desconforto na audiência. É tudo muito domesticado; as transformações corporais são sutis, e a personagem nunca rompe com os elementos que a fazem sentir aprisionada.
Pelo contrário, apesar de a maternidade e dos cuidados do lar a sufocarem, Canina jamais sequer flerta com a possibilidade de ela ser nada menos do que uma excelente mãe, e, logo, não é a vida doméstica aquilo que a oprime, mas a selvageria que tenta expressar. Uma das poucas cenas que seu lado selvagem vence é seguida por uma imagem da protagonista entre as barras de um brinquedo, como se estivesse aprisionada.
Assim, Canina parece olhar para a revolta da protagonista com sua condição com certa condescendência. Por mais que entenda sua raiva, o recado final é o que citei acima: vai passar. A maternidade é realmente o melhor dos mundos, e a família nuclear é linda e maravilhosa. A rebeldia passa, e o que fica é a família tradicional à luz do luar.
Texto de cobertura do Festival do Rio 2024