Mulheres e loucura é um tema recorrente na literatura. Temos Virginia Woolf investigando o que aconteceria se Shakespeare tivesse uma irmã igualmente talentosa e curiosa sobre as letras e a escrita, no que se chega à conclusão de que ela não teria a menor chance: “seu dom era o da ficção, e ansiava por alimentar-se da vida de homens e mulheres e do estudo de seus costumes. Por fim (…) matou-se em uma noite de inverno”.
Charlotte Perkins Gilman, por exemplo, no clássico “O papel de parede amarelo”, debruça-se sobre a depressão de sua personagem e a prisão na qual a mulher de seu tempo era mantida e contida, uma prisão muito além das paredes de um quarto com um papel de parede horroroso e estranho. É o colapso mental fruto da opressão. Cecília Rogers, autora de “Agualuz”, publicado pela Mondru, em 2023, soma-se a essas e outras autoras ao explorar a melancolia no processo de enlouquecimento de uma mulher violentada das mais diversas formas.
Mestre em Letras e poeta com quatro livros publicados, Cecília estreia no romance com “Agualuz”, uma prosa que com bastante elegância recorre ao poético.
O livro começa conosco, leitores, sendo jogados no turbilhão de uma tragédia daquelas que marca uma vida e tendo Luzia, personagem principal e narradora, como guia de suas próprias memórias. Memórias que vem e vão em um fluxo de consciência perturbador.
Do interior da psique dessa narradora-personagem vemos sua história, sentimos suas dores, e tentamos montar o quebra-cabeça que nos é apresentado ao longo da narrativa. Infância, adolescência e vida adulta giram numa espécie de redemoinho onde tudo acontece ao mesmo tempo, passado e presente, enquanto ela é puxada para o fundo por meio desse rebojo, nos levando junto.
Escavando a história da própria família ela lança luz sobre seus traumas. A morte do apaixonante irmão, a culpa, a violência e os abusos de um pai que encarnou no próprio demônio, o pai que “Se acha Deus. Um deus cruel. Um deus-cárcere. Um deus de assombro.”.
“Éramos almas livres, sempre à procura do nosso lugar, que não era na casa do nosso pai. Não éramos pássaros de gaiola. Nosso voo era de ar.”
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Desamparada após o incidente que culmina com a morte desse irmão, ela cai em um poço, física e metaforicamente falando; é jogada em um quarto e em um colégio interno, lugares que representam a escuridão que tomou conta do interior da personagem, em contraposição à luz que emanava desse amado irmão e da relação entre eles.
“Estou sozinha. Está escuro. Quero me levantar, não consigo. No poço? No quarto? Ele me colocou aqui. As bonecas cantam uma música triste. Seus cabelos desalinhados. Estendo as mãos e elas vêm. Maria, Joana, Laura. Procuro a escova. Está no canto onde a deixo sempre. Naquele quarto, eu era agora a menina que corria pelos campos até aquele dia de escuridão. O afundar das águas no meu peito. Estou presa dentro do poço.”
O incidente envolvendo o irmão, inclusive, ao ser incessantemente revisitado pela personagem dá margem a interpretações, o que acaba mostrando-se uma característica da narrativa. Cecília cria imagens muito vívidas através do poético e que terminam por deixar muita coisa em aberto para o leitor, o que amplia a experiência de leitura. Até porque, temos aqui uma mente bastante conturbada, o que facilmente pode transformar a narradora em uma narradora não confiável, deixando as possibilidades do que é real e do que é imaginário se confundirem e nos confundirem. Não são só memórias. São interpretações, mas toda memória não é nada mais nada menos que uma interpretação?
Passamos por trechos de muita consciência e outros de puro delírio, como se com a água cobrindo-lhe a cabeça, Luzia por vezes conseguisse içar o pescoço e respirar um pouco antes de ser tragada novamente pelas águas da culpa e do luto. Dois sentimentos que se somam à melancolia e adicionam mais camadas à opressão e à violência de gênero que permeiam toda a narrativa e se expandem para além da personagem, abarcando as mulheres que a cercam. Mãe, irmãs, Tonha, “que nunca entrou para a família de verdade”. Mulheres violentadas, inclusive sexualmente, silenciadas, oprimidas. O patriarcado em ação.
“O pai me puniu pela morte do seu filho homem, me jogou num quarto escuro. Quis me jogar num casamento sombrio. Eu, a doida, fui condenada a queimar na fogueira da culpa. A tristeza me consome. Conseguirei chegar à margem?”
Há, aqui, uma personagem despedaçada, mas que ao contrário das bonecas da infância, não vai facilmente ser costurada, remendada, alinhavada.
Aos poucos ela vai desaparecendo e desfazendo-se da realidade, afundando no poço e sem ninguém para lhe jogar uma corda. A raiva e a revolta também se instalam: “Minha fúria é onça presa num quarto escuro.”. Porém, ao fim, talvez haja redenção.
“Lavo minha culpa na água. Tiro a roupa, mergulho nua. Sou a correnteza que segue pelo rio.”
“Agualuz” é uma narrativa carregada de melancolia e solidão, um livro curto, mas denso, para ser lido numa sentada, como o mergulho nas águas sabidamente gélidas de um rio. Você só pula.
Sobre a autora:
De Niterói, no RJ, onde reside, Cecília é filha de baiana com inglês. Engenheira e Mestra em Literatura portuguesa e africana – UFF, em 2018 seguiu pelos caminhos da escrita e tem 4 livros de poesia publicados, sendo os 2 últimos, Contas do rosário (2021, Penalux) e Submersa (2022, e-book). Tem ainda 2 publicações no insólito (22/23, e-book) e está em antologias e revistas diversas. Premiada no Concurso Carvalho Jr. e finalista no Off Flip (2022). Em 2023 publicou Agualuz (Mondru), seu primeiro romance, um drama psicológico. A ancestralidade e as questões que envolvem a mulher percorrem sua escrita.
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