Jardim dos Desejos (2022): a jardinagem e o cuidado como metáforas contra um mundo brutal

Existe algo muito essencial no cinema – e que até deveria ser muito simples – que é a forma como se constrói um personagem e como se apresenta ele ao espectador. É muito comum no teatro, por exemplo, que grandes personagens que dão nomes às peças só apareçam, com boa parte da peça andada, como Tartufo, o impostor de Molière e até o Hamlet, de Shakespeare. É com isso, inclusive, que brinca Beckett em Esperando Godot. Porém, há em Paul Schrader algo no artifício da criação do personagem que transforma toda a nossa experiência cinematográfica e não está na espera. Mas na retenção e na reserva. É disso que Jardim dos Desejos (2022).

Jardim dos Desejos (2022) conta a história de Narvel Roth, um jardineiro altamente habilidoso e conhecedor de sua atividade, que trabalha em uma residência chique comandada pela Sra. Haverhill. Um dia, a dona da casa pede que Narvel inicie sua bisneta Maya na atividade da jardinagem. A partir daí, o que temos é uma série de reviravoltas do destino e do passado com uma série histórias que se atravessam.

Maya, por exemplo, é uma jovem negra, mestiça, cuja família não possuía as posses da outra parte da família e teve sua vida afetada pelo uso de drogas de seus pais. A Sra. Haverhill, enquanto isso, vive uma relação ressentida com seu próprio passado e de sua família e vê na manutenção do jardim como uma forma de mostrar seu valor enquanto pessoa daquela sociedade.

Narvel, por sua vez, é um caso que não podemos falar muito porque concentra grande parte do cerne e do interessante da história, porém, é na ambivalência entre sua atividade atual, o cuidado do jardim, e seu passado, que habita Jardim dos Desejos (2022). Interessante, no entanto, é avaliar partindo do ponto de partida que Paul Schrader nos dá. Vamos lá.

Jardim dos Desejos (2022), cujo título original em tradução literal seria “Mestre Jardineiro” – muito melhor por sinal – vê, pensa e apresenta o mundo através da sua relação com o jardim. O tempo com que uma planta precisa maturar, a forma com que uma flor nasce subitamente ou o cuidado que uma planta necessita no momento de seu plantio. As metáforas entre natureza humana e natureza propriamente dita são inúmeras e vão nos servindo de suporte para a construção desse personagem. Porém, não para aí porque o jogo cai pro estético.

O que de mais importante podemos tirar, porém, é de que a natureza – nesse caso ambas – é imparável. Impulsivo, sim, mas também belo. Ela é uma força que impele tudo para a frente a todo instante mesmo que você queira parar. Por um lado, ela impede que a gente tenha o tempo necessário para remover as marcas do passado, afinal elas nos persegue. Por outro, ela nos permite andar e deixar essas marcas cada vez mais para trás. E não seria essa a trágica beleza da vida?

E é aí que a fotografia do filme faz o seu ballet porque ela parte de noções bastante clássicas do cinema, do cinema russo ao cinema fascista, da novelle vague ao thriller noir de hollywood para nos contar essas passagens das personagens, esses momentos da vida que, por vezes, duram instantes. De um lado, temos a casa grande estável, das paredes de água-viva azulada e seus jantares frios. Do outro, as diversas trilhas do jardim e das ruas que Narvel e Maya precisam atravessar e, por fim, as cores sombrias de um passado que insiste em vir à toa.

Jardim dos Desejos (2022) é sem dúvida um filme forte e bonito, inteligente e cuidadoso cuja principal qualidade é saber costurar em seus poucos personagens grande parte da densidade humana. E nos jardins, imparáveis formas belas, são espelhos daquilo que vivemos, mas que o destino, ou o acaso, quase sempre nos impede de aprender.

Veja o trailer aqui:

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