Além de poemas, sonetos e letras de canção de amor, Vinícius de Moraes também demonstrava interesse por poemas fúnebres e sinistros, embora essa face do Poetinha ainda fosse desconhecida. Esse lado pouco explorado do autor vem sendo estudado por novos pesquisadores. Em 1993, num ensaio, Ivan Junqueira descreveu Vinícius como o poeta do amor e da morte. Anos mais tarde, em 2006, ao analisar num ensaio o poema “Balada dos mortos dos campos de concentração”, Eucanaã Ferraz identifica o fenômeno do grotesco como uma das características fundamentais da obra do poeta.
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Em 2019, Daniel Gil, defendeu a tese de doutoramento em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada O poeta do grotesco, Vinicius de Moraes. A partir desse trabalho, ele organizou uma antologia que reúne 50 poemas macabros do autor. Nessa obra, lançada pela Companhia das Letras, em 2023, e ilustrada por Alex Cerveny, também estão incluídos 7 poemas inéditos, extraídos de documentos do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa. Embora alguns poemas sejam conhecidos, eles se enquadram dentro da temática proposta.
No posfácio do livro, Gil destaca: “Já era uma dívida com Vinicius preparar uma publicação que expusesse o seu apreço pelo feio, pelo grotesco, pelo macabro. Isso porque o êxito incalculável de seus versos amorosos acaba lhe conferindo uma persona supostamente incompatível com esse campo semântico; um tanto mais se considerarmos seu legado com o público infantil. Digo “supostamente” pois há uma energia específica extraída desses contrastes: é natural que escritores e artistas vinculados a uma estética sinistra sejam também, frequentemente, os que exploram emoções humanas como o amor, a euforia, as paixões, os desequilíbrios — são artistas do extremo. […]”
Confira alguns poemas:
A MORTE
A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
SONETO DA HORA FINAL
Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente
O beijo leve de uma aragem fria.
Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.
Ao transpor as fronteiras do Segredo
Eu, calmo, te direi: — Não tenhas medo
E tu, tranquila, me dirás: — Sê forte.
E como dois antigos namorados
Noturnamente tristes e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.
BALADA DO ENTERRADO VIVO
Na mais medonha das trevas
Acabei de despertar
Soterrado sob um túmulo.
De nada chego a lembrar
Sinto meu corpo pesar
Como se fosse de chumbo.
Não posso me levantar
Debalde tentei clamar
Aos habitantes do mundo.
Tenho um minuto de vida
Em breve estará perdida
Quando eu quiser respirar.
Meu caixão me prende os braços.
Enorme, a tampa fechada
Roça-me quase a cabeça.
Se ao menos a escuridão
Não estivesse tão espessa!
Se eu conseguisse fincar
Os joelhos nessa tampa
E os sete palmos de terra
Do fundo à campa rasgar!
Se um som eu chegasse a ouvir
No oco deste caixão
Que não fosse esse soturno
Bater do meu coração!
Se eu conseguisse esticar
Os braços num repelão
Inda rasgassem-me a carne
Os ossos que restarão!
Se eu pudesse me virar
As omoplatas romper
Na fúria de uma evasão
Ou se eu pudesse sorrir
Ou de ódio me estrangular
E de outra morte morrer!
Mas só me resta esperar
Suster a respiração
Sentindo o sangue subir-me
Como a lava de um vulcão
Enquanto a terra me esmaga
O caixão me oprime os membros
A gravata me asfixia
E um lenço me cerra os dentes!
Não há como me mover
E este lenço desatar
Não há como desmanchar
O laço que os pés me prende!
Bate, bate, mão aflita
No fundo deste caixão
Marca a angústia dos segundos
Que sem ar se extinguirão!
Lutai, pés espavoridos
Presos num nó de cordão
Que acima, os homens passando
Não ouvem vossa aflição!
Raspa, cara enlouquecida
Contra a lenha da prisão
Pesando sobre teus olhos
Há sete palmos de chão!
Corre, mente desvairada
Sem consolo e sem perdão
Que nem a prece te ocorre
À louca imaginação!
Busca o ar que se te finda
Na caverna do pulmão
O pouco que tens ainda
Te há de erguer na convulsão
Que romperá teu sepulcro
E os sete palmos de chão:
Não te restassem por cima
Setecentos de amplidão!
A MORTE SEM PEDÁGIO
A morte pode vir de súbito
Sem ureia nem colesterol
Feito um cadáver em decúbito
A boca cheia de formiga
Aberta e negra contra o sol.
Ou pode vir mais lenta e pânica
Como em desastres de avião
Onde nossa matéria orgânica
Se gruda às fímbrias dos destroços
A carne e os ossos da explosão.
Como também pode ser ígnea
Espessa e ascensional
Como no incêndio de um edifício
A morte cruel, sem artifício
Mais pura e trágica e difícil.
Ou pode ser a morte frágil
Propícia à arte de filmar
Como no caso de um naufrágio
Onde sucumbe quem for sábio
E sobrevive quem rezar.
O CEMITÉRIO NA MADRUGADA
A Edmundo da Luz Pinto
Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
E fica como louca, sentada, espiando o mar…
É a hora em que se acende o fogo-fátuo da madrugada
Sobre os mármores frios, frios e frios do cemitério
E em que, embaladas pela harpa cariciosa das pescarias
Dormem todas as crianças do mundo.
Às cinco da manhã a angústia se veste de branco
Tudo repousa… e sem treva, morrem as últimas sombras…
É a hora em que, libertados do horror da noite escura
Acordam os grandes anjos da guarda dos jazigos
E os mais serenos cristos se desenlaçam dos madeiros
Para lavar o rosto pálido na névoa.
Às cinco da manhã… — tão tarde soube! — não fora ainda uma visão
Não fora ainda o medo da morte em minha carne!
Viera de longe… de um corpo lívido de amante
Do mistério fúnebre de um êxtase esquecido
Tinha-me perdido na cerração, tinha-me talvez perdido
Na escuta de asas invisíveis em torno…
Mas ah, ela veio até mim, a pálida cidade dos poemas
Eu a vi assim gelada e hirta, na neblina!
Oh, não eras tu, mulher sonâmbula, tu que eu deixei
Banhada do orvalho estéril da minha agonia
Teus seios eram túmulos também, teu ventre era uma urna fria
Mas não havia paz em ti!
POEMA DE NATAL
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Sinopse: Mais frequentemente lembrado por seus versos de amor, Vinicius de Moraes sempre cultivou um apreço pelo feio e o grotesco. Não que uma característica exclua a outra — em sua poesia, o belo e o mórbido andam de mãos dadas. Estes 50 poemas macabros apresentam ao leitor uma faceta que marca toda a produção do poeta, mas poucas vezes recebeu destaque como um dos principais atributos de sua obra. De cemitérios a campos de concentração, caminhando entre fantasmas ou corpos decompostos, está aqui o Vinicius fúnebre e escatológico, aquele que pode ser considerado, “com a devida atenção, o principal herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos”, como escreve Daniel Gil, que organiza a seleção e assina o posfácio. Com projeto gráfico especial e ilustrada por Alex Cerveny, a antologia inclui ainda sete poemas inéditos, extraídos de documentos do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa: “A morte sem pedágio”, “A consumação da carne”, “Poema de aniversário”, “Cara de fome”, “Parábola do homem rico”, “Desaparição de Tenório Júnior” e “O sórdido”.
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