O crítico literário francês Roland Barthes, em seus Fragmentos do Discurso Amoroso, dizia que Milan Kundera é um grande leitor das relações amorosas. Acho essa perspectiva interessante porque dá e retira de Kundera a temática do amor – quase sempre nas convulsões românticas entre a identidade e a perda da identidade – colocando o autor tcheco no mesmo lugar daqueles que leem seus livros: de um leitor.
Milan Kundera, de certa forma, atravessa suas obras pelas temáticas em torno das relações amorosas, mas quase nunca se coloca como um agente ou um promotor delas. Pelo contrário, Kundera está procurando nas relações amorosas muito mais do que elas podem nos dar, como suas políticas, suas éticas, seus anacronismos, liberdades e conservadorismos, suas máquinas que servem tanto ao capital quanto a um movimento que se lança contra o status quo. De certa forma, é o amor pensando pró e contra as forças do mundo.
No caso de A Identidade, a obra gira em torno do casal Chantal e Jean Marc. Ela é uma mulher bela, mas muito mais velha que Jean, um jovem apaixonado, mas ainda um tanto quanto deslocado deste mundo. Apesar de apaixonada por ele, Chantal vive momentos posteriores a ter perdido um filho e experimenta o sofrimento da perda, enquanto vive, também, a liberdade de não tê-lo mais.
Em determinado momento, porém, ela tem uma dessas epifanias da vida: ela chega à uma constatação alarmante que desloca o que conhece de si até agora, e vendo-se transformada num impulso, confessa-se a Jean Marc: nenhum homem olha mais para ela na rua. E mais, nenhum homem vira para ela na rua. Jean Marc, a princípio, se debruça sobre esse desejo, tentando entender o que significa isso para a mulher que ama e, entende, que a perda do olhar dos demais homens significava a ela uma espécie de perda de identidade, ou seja, daquilo que lhe caracterizava enquanto sujeito. Caberia a ele, como par amoroso, “devolver ao rosto transtornado a identidade perdida”.
No entanto, o que se percebe é que a identidade de Chantal não se fazia pelo amor dele ou pelo amor dela por ele, mas por outra coisa, na qual o amor não podia tocar. O amor, no caso, era incapaz de engendrar qualquer identidade:
“Por mais que dissesse que a amava e a achava bela, seu olhar amoroso não podia consolá-la. Porque o olhar do amor é o olhar do isolamento. Jean-Marc pensava na solidão amorosa de dois seres velhos que se tornaram invisíveis para os outros: triste solidão que prefigura a morte. Não, o que ela precisa não é de um olhar de amor, mas de uma inundação de olhares desconhecidos, grosseiros, concupiscentes e que pousam nela sem simpatia, sem escolha, sem ternura nem polidez, fatalmente, inevitavelmente. Esses olhares a mantêm na sociedade dos humanos. O olhar do amor a exclui.”
Embora ela tivesse dúvidas de sua identidade, ele quer se empoderar enquanto objeto amado-amante ao encontrar uma solução para Chantal. Assim, ele passa a escrever cartas para ela fingindo ser um amante secreto, alguém que a admira, que vigia e acompanha seus passos. Ela não sabe que é ele quem manda as cartas e, admirada e surpresa, resolve guardar estas cartas nas gavetas abaixo dos sutiãs, numa misteriosa cena quase erótica. Para esconder de Jean Marc? Para quem? De certa forma, o recebimento das cartas passa a dar um novo mundo a ela, um mundo que reacendia o movimento das ruas, na medida em que ela passa a andar pela cidade a procura desse olhar que olha pra ela. Por outro lado, passa a dar a ela algo a mais para a relação amorosa, um segredo que serve tanto como jogo erótico como uma espécie de quebra desta unidade que o amor deveria conter. A identidade, então, se volta contra o par romântico.
Enquanto ela busca esta identidade dela e de outro, ele diz não reconhecer no gesto dela de esconder as cartas a identidade que havia identificado como dela. Passa a ter ciúmes de suas próprias cartas escondidas e ver em Chantal uma mulher que até então lhe passava ao lado, ou outra secreta que ele não conhecia, desfazendo algo dela que vivia nele:
“Chantal guardando zelosamente as cartas de um admirador desconhecido para não sufocar uma promessa de aventuras. Aquela Chantal não é a que ele ama. Aquela Chantal é um simulacro.”
Para não contar mais do romance, pode-se dizer que Kundera, através destas peripécias dos sentimentos amorosos e das práticas desse amor entre Chantal e Jean Marc, discute parte do que seria o próprio conceito de identidade: uma espécie de vazio, de marca aberta cuja ocupação provisória é apropriada por si e pelos outros.
A identidade de Milan Kundera é esta des-identidade típica da pós-modernidade, onde queremos construir um monumento a nós mesmos, porém queremos que ele seja frágil, nebuloso, livre para ser manejado por fora das linhas duras construídas pelo século XX. A identidade, por fim, é aquela que não nos diz mais quem somos, mas apresenta uma série de atravessamentos de seres possíveis, instáveis, em construção, em processo, mas cuja atividade amoroso não só desvela como também denuncia aquilo que chamamos de eu. Um grande e breve livro!
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