A história de porque resolvi ler este livro pode dizer algo sobre ele: estava eu em minha primeira viagem a Lisboa, em um pequeno sebo no Chiado, quando o nome da obra, e do autor, me chamou atenção. Folheei o livro e vi que em seu estado antigo de livro de sebo havia um bolor para além do título. Vasculhei a contracapa e a orelha e percebi que tratava-se de uma obra que precisava sair da estante, precisava ser lida, enfim, uma obra que eu precisava conhecer. Tirar o bolor do livro, conhecer o bolor do livro. Não o comprei no dia, acabei tendo de voltar ao Brasil, mas o livro me ficou na cabeça e eis que, agora, consegui ter ele em mãos para ler. E se conto isto é porque a própria obra trata disso:
Concentrar-me-ei nesta ideia: espantar-me por não me espantar, por conseguir viver sem espanto num mundo espantoso.
Bolor, de Augusto Abelaira, é um romance do chamado “neorrealismo português”, lançado em 1968, que conta a história do triângulo amoroso Humberto, casado com Maria dos Remédios, que tem uma relação extraconjugal com Aleixo. Maria dos Remédios busca, a todo instante, tentar entender o seu lugar na relação com Humberto e, por conseguinte, o seu lugar no mundo dele (e no seu mundo). Quer saber porque ele está com ela e se ele a ama e, assim, projeta no diário de Humberto suas indagações que ele jamais lê porque, sem que ela saiba, havia prometido escrever sem ler as páginas anteriores. Ao mesmo tempo, Aleixo, melhor amigo de Humberto, também resolve escrever um diário em que, diante de sua solidão, resolve emular as pessoas de Humberto e Maria dos Remédios. Assim como faz com Humberto, Maria quer saber de Aleixo sobre seu lugar naquela relação para, talvez, se encontrar no mundo. Assim, as narrativas se embaralham entre a figura de Humberto e Aleixo, em Maria dos Remédios e Catarina, ex-esposa falecida de Humberto. Suas histórias, suas narrativas se coletivizam e todos, em algum momento, podem dizer qualquer daquelas frases, contar aquelas histórias, viver aquelas vidas. São indivíduos que se coletivizam, espalham-se para além de suas próprias palavras.
Aprende a olhar, pois as palavras são cegas, são surdas, não tem sabor, nem tacto…
Aos poucos, a obra vai se compondo de uma série de relatos de diários em que quem escreve e quem é personagem passa a ser, no mínimo, de uma transparência insuspeita. E Maria dos Remédios, aquela que só escreve quando invade a escrita dos outros – porque o seu diário nos é um tanto quanto mistério – atributo resultante do papel que o gênero impõe as mulheres nas relações, terá uma conversa franca apenas quando se encontra com Leonor, esposa de Aleixo, com quem passa uma tarde em um café, um encontro que produz um dos mais sensíveis diálogos femininos da literatura.
Somos reacionários irremediáveis, somos contra-revolucionários incorrigíveis, regimes como o nosso são os regimes ideais. São-nos álibis, permitem-nos a boa consciência, a precisa ilusão de nos supormos revolucionários…
Bolor, esta obra que me caiu nas mãos em uma viagem que acabou antes do que devia, é uma obra de um pós-modernismo urgente, de um 1968 pujante de uma ditadura portuguesa, e de forças que intensamente lutavam contra o fascismo. As discussões políticas, que passam a margem pela obra, nos deixam, quase que de canto de olho, a ideia de que mais do que derrubar um governo é preciso derrubar suas estruturas, suas formas. Assim, Bolor, em um diário íntimo que se torna público, em casais que se recusam a ser dois, produzem uma coletividade intensiva, de um passado que não se pode repetir e de um presente que em que a todo instante precisamos estar atentos para escrever e, mais que tudo, in-scre-ver: levar para dentro, acreditar, olhar. Toda história é política.
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