“NÃO LEIA ISTO! Ainda não. […] Nunca leio aquilo que chamam de ‘apresentações’ de histórias, sejam ‘de fadas’ ou não, esses longos discursos sobre o autor ou a história, e creio que ninguém deve ler. Não é justo com o autor nem com o leitor. […] Inicialmente vocês precisam ter liberdade para notar e gostar (ou não gostar) disto e daquilo por si sós, sem ajuda ou (muito provavelmente) impedimento. Então não me deem atenção. Pelo menos não até terem lido a história. Pois o que está errado nas ‘apresentações’ é seu lugar. Elas deveriam vir em segundo lugar […] e ser como as conversas que um leitor poderia ter com outras pessoas que leram a história: tais conversas poderiam levar a um compartilhamento do prazer ou a um debate sobre as discordâncias, e até levar a uma segunda leitura.” (p. 64)[1]
Muito nos é dito, leitores, sobre as obras de Tolkien e muito delas elas nos dizem. Em 2015, o que não é tanto tempo até para quem tem memória curta, foi publicado pela WMF Martins Fontes, no Brasil, o livro “Ferreiro de Bosque Grande” de J.R.R. Tolkien, livro este que nos traz de volta aos encantos da mente criadora de Senhor dos Anéis por meio de um conto de fadas – somado a vários adendos como trechos sobre a criação do conto, um ensaio sobre ele, uma apresentação de um livro que nunca foi publicada e outras coisas mais.
Confesso, caros leitores, que em meio a tantos conteúdos apresentados me senti receoso de não atingir uma reflexão que suprisse tamanha necessidade a que senti ao ler essa obra. Encontrei-me preso ao pensar que não atingiria e somaria contando com tantas – e ótimas – análises que o próprio livro traz consigo – já que sabemos, eu e você, leitor, que Tolkien foi um subcriador de um universo que abrange mais de uma obra e que fez grande parte de toda sua vida.
Proponho aqui, nesse artigo que, analisando a obra, nós consigamos nos aperceber – ou pelo menos refletir sobre – em que lugar da obra total de Tolkien podemos localizar esse conto que é trazido como o último feito pelo professor. Portanto:
Ferreiro do Bosque Grande faz ou não faz parte do mesmo mundo de Senhor dos Anéis e o Hobbit?
Pois bem, se levarmos em consideração o Legendarium, que numa ótima definição nos traz o site Tolkien Brasil “Legendarium são todas as expressões, escritas ou não, registradas e publicadas (áudio, escritas, livros, artigos, poesias, ilustrações e entrevistas etc) de autoria de J.R.R.Tolkien a respeito do seu Universo Mitológico. Em suma, Legendarium são as fontes para se formar o que seria a mitologia de Tolkien.” [2], conseguimos, em um cotejo, tomar ciência de semelhanças que nos remetem à Terra Média, seja na Forma da escrita de Tolkien, seja no conteúdo trazido. Vejamos, leitores, a obra mais de perto:
“Sem dúvida, alguns que mereciam o convite eram esquecidos, e alguns que não o mereciam eram convidados por engano, pois é assim que são as coisas, não importa quanto possam tentar ser cautelosos os que organizam tais eventos.”
“- Pelo menos não vai partir sem avisar – diziam -, e uma comida ruim é melhor do que nada. Faltam sete anos para o próximo Grande Bolo, e nessa época ele deve ser capaz de fazê-lo.” [1]
Como vemos nos trechos, são ideias de John que, em sua estrutura lógica já foram abordadas anteriormente em Senhor dos Anéis, com a fatídica fala de Gandalf, e a segunda quanto ao comportamento dos Hobbits. Mas antes permitam-me responder desde já duas contestações que me acometem na afirmação que veio com a análise: a primeira é uma questão que o próprio livro sana, em seus adendos, que diz que um autor chega a um ponto em que sua criação não vem mais da pura criação imaginativa que surge, mas sim de sua experiência e até análises das próprias obras, aproveitando o que dá certo, o que funciona, o que lhe agrada (adendo meu), para escrever novos textos; a segunda é que sei ser errado comparar hobbits com humanos, são criaturas diferentes que se evitam naturalmente, não por maldade, mas muitas vezes por se “desimportarem” uns com os outros por não “pertencerem” às mesmas realidades de vida – vide que na própria obra de O Hobbit ou Senhor dos Anéis há certa demora para compreensão de quem são os pequeninos, e a frase em que o professor afirma que eles se escondem de nós. Mas como veremos a frente, nossa análise é capaz de permitir esse pensamento.
Seguindo essa leitura quanto à forma, o Ferreiro de Bosque Grande, é um texto de linguagem simples, porém não direcionado exclusivamente para crianças. O próprio Tolkien defendia a quebra dessa ideia de que os contos de fadas são histórias exclusivamente infantis, que só tratavam de fadas, e que os seres habitantes desse Belo Reino (ou Terra-Fada, ou Faerie, variações morfológicas/lexicais que inclusive fomentam o debate sobre os significados da palavra que dá origem à “Fada”) são todos diminutos e pequenos. Acredito ser válido que nos perguntemos qual a importância de se frisar tal fato, e vejo que a resposta é frágil, mas se permitem: os livros que compõem o Legendarium não são para crianças; sim, podem ser lidos como um livros infantis – vide O Hobbit – mas a sua complexidade pode ser absorvida e compreendida a cada releitura feita a cada ano passado. Mas não só por isso, o fato de Tolkien se manter quanto à sua criação e ainda não permitir alegorias – apesar de aceitar uma possível interpretação alegórica em certas partes da história, tal como em Silmarillion, sobre a Criação (que, lá no fundo, não é bem alegoria) mas não entremos nesse mérito agora – a história não permite uma alegoria tão forte em seu significado como em um conto mais afastado do Legendarium como “Leaf By Niggle”.
Para uma avaliação mais efetiva sobre a permanência da história no Legendarium, convido-nos a recorrer novamente ao Tolkien Brasil para uma delimitação mais certeira:
“1 – Ser obra publicada (no sentido de ter uma editora e ser oficialmente publicado, com autorização da Tolkien Estate).
2 – Autoria de J. R. R. Tolkien (somente o próprio autor pode expor e afirmar algo como sendo original de sua criação, se for realizado por outra pessoa é considerado apenas como uma interpretação).
3 – Tratar sobre o Universo Mitológico – esse é considerado todas as histórias e composições que se passam em Arda, o que incluiria Valinor e a Terra-Média.” [2]
As duas primeiras afirmações são tranquilamente avaliadas como positivas, no entanto, teremos que nos aprofundar à terceira para que possamos localizar o último conto de Tolkien. Como poderíamos afirmar que o livro se passa em Arda? Temos que nos ater ao conteúdo do livro nos percebermos das características comuns e discrepantes. Primeiramente, Tolkien afirma que a história de Ferreiro de Bosque Grande se passa numa Inglaterra que não há a intervenção de máquinas, daí, comparando com a informação já dada que para Tolkien, Arda, seria como nossa Terra, assim chamada há muitos e muitos anos, e que a Terra-Média se encontraria na Europa – mais precisamente na parte noroeste, se assim pode ser dito. Disso, é possível deduzirmos que a história de Bosque Grande ocorreria na Terra-Média muitos anos após os eventos de O Senhor dos Anéis, certo? Não exatamente… Bem, leitores, apenas atestarmos geograficamente que a história se passa na Europa, e consequentemente em Arda, não é o suficiente para comprovarmos que a história feita pelo professor é parte do Legendarium. [3]
Isso porque se levarmos também em consideração o tempo, o mundo de O Ferreiro de Bosque Grande já é um mundo dominado pelos homens e que as criaturinhas tal como Hobbits e Elfos se escondem de nós e raras vezes influenciam nele, no nosso cotidiano, nos carrega, novamente, à ideia de que esse conto se passa após a Terceira Era (ou seja, eventos das histórias de Senhor dos Anéis) [3]. Os elementos mágicos como Elfos são elementos mantidos e bem vívidos na história, apesar de uma ausência de descrição de costumes e aparências – genial e propositalmente feitas – não podemos confirmar que tipo de Elfos são, o lugar específico que vivem e se falam algum idioma além do comum da época e outros lugares que se encontram, ou que tocam o seu reino.
Um pensamento contrário pode surgir é acerca do último navio a zarpar dos Portos Cinzentos. Como bem nos permite refletir, leitor, o navio a levar os portadores do anel foi o último a sair dos Portos Cinzentos, no entanto, havemos de notar que existiam outros portos que levavam Elfos para Valinor e que poderiam ter saído tempos depois, nos permitindo interpretar que nem todos os Elfos saíram da Terra-Média juntamente com Gandalf, Frodo e Bilbo; e base desse fato é que Legolas e Gimli saíram da Terra-Média pelo porto que ficava mais próximo a Gondor, 120 anos depois [4]. Então, prosseguindo na nossa análise, fica cada vez mais válido afirmarmos que Ferreiro de Bosque Grande possa fazer parte do Legendarium de Tolkien, certo? De novo, não exatamente…
Entretanto, o professor deixa certas partes vagas, como por exemplo o fato de o protagonista precisar de um objeto servindo como “chave” para que consiga entrar na Terra-Fada. Com o passar dos anos e o domínio dos homens, podemos deduzir que sim, que os Elfos não permitem a entrada de qualquer um em suas terras e que só determinadas pessoas desfrutariam da sua presença e sua companhia – quando permitida [1]. No entanto, ao entrar na Terra-Fada, o Ferreiro, filho do Ferreiro, lida não só com Elfos ou criaturas diminutas, há seres que não parecem se enquadrar bem na mitologia do Legendarium, como o Vento Selvagem, por exemplo. Parece-me um pouco bobo forçar nessa distinção que me veio à mente em meio a nossa análise, leitor, mas é válido ressaltar que esses elementos parecem demasiados fantásticos e obscuros – num sentido de não apresentarem relações ou aparições/referências nas outras obras do Legendarium – para que pertençam à essa determinada “mitologia”. Obrigando-nos a refletir se essa ausência de aparições pode ser uma problemática para a aplicação da história na mitologia de Tolkien ou uma comprovação do tamanho realmente extenso e ampliado dessa Criação.
Por fim à nossa análise, deixo a minha, respeitando o desejo de Tolkien ao dizer que devíamos ler a nossa leitura, para então explicitá-la e gerar debates e até, quem sabe, provocar uma nova leitura para nós, leitores, trazendo assim engrandecimento quanto a própria história. Tolkien deixou muitas lacunas propositalmente, já que defendia que não havia como explicar todo o Reino das Fadas, pois o autor é apenas um guia naquele lugar, e quando (sub)cria uma história, ela não é toda de mérito seu. O autor é apenas um subcriador que leva os leitores na direção do Belo Reino, Faerie, Reino das Fadas, Terra-Fada – ou seja qual mais carga semântica a expressão consiga carregar em si. [5] E são dessas lacunas que nos faltam as respostas para afirmarmos com certeza se é ou não uma história que se passa no mesmo “universo” de Senhor dos Anéis.
Apesar de muitos pontos em comum, não há um ponto acerca do conteúdo como um ponto histórico em comum – como a presença do homem da lua em Roverandom [2], que aparece em um poema –, além da presença de Elfos – que são muito comuns em vários tipos de história, inclusive em diversos contos de fadas -, que nos permita fazer essa ligação. Numa resposta objetiva diria que ele não faz parte diretamente do Legendarium do professor.
Para mim, O Ferreiro de Bosque Grande é uma obra, como afirma o próprio livro, de um homem que sabe da sua própria privação futura, mas que não se prende apenas nisso; é uma obra viva que, sendo o último conto de Tolkien, traz tanto a força de sua energia criativa como a de sua experiência de vida e escrita, tornando essa aplicação da história ao Legendarium uma discussão que fortalece e aprofunda a história, mas que, se de fato, não couber ao conto pertencê-lo, não tira em nada da sua majestosa simplicidade de um ótimo conto de fadas.
REFERÊNCIAS:
[1] TOLKIEN, J. R. R., Ferreiro de Bosque Grande, 1 ed. SP: WMF Martins Fontes, 2015.
[2]http://tolkienbrasil.com/noticias/sobre-livros/legendarium-j-r-r-tolkien-saiba-sao-obras-tratam-universo-mitologico-senhor-aneis/
[3] http://tolkienbrasil.com/artigos/colunas/eduardostark/a-terra-media-e-o-passado-do-nosso-mundo/
[4] http://tolkienbrasil.com/artigos/colunas/sergio-ramos-colunas/o-navio-que-levou-os-portadores-do-anel-foi-o-ultimo-a-zarpar-da-terra-media-para-as-terras-imortais/
[5] TOLKIEN, John Ronald Reuel. Sobre Histórias de Fadas. 2 ed. SP: Conrad, 2010.