A literatura é uma das melhores formas de se conhecer e compreender melhor a existência, compreender a humanidade que nos cerca e que nos inclui. No entanto, tal humanidade nem sempre parece incluir a todos, e não é novidade que muitos se sentem perdidos no mundo em que vivemos, sem se identificar com outras pessoas ou grupos. Nascemos e crescemos em busca de nosso lugar no mundo e muitos de nós parecemos nunca ou quase nunca encontrar tal lugar o qual possamos chamar de nosso, como se não pertencêssemos ao sistema ao qual estamos (ou deveríamos estar) inseridos.
Cada um por motivos próprios, muitos se sentem deslocados, e muitas vezes esses motivos podem ser relacionados a problemas de depressão, ou talvez seja ao contrário e é a falta de encontrar um caminho que leve tais mentes a pensamentos depressivos. Seja como seja, fato é que cada mente tem suas particularidades e por isso muitos de nós acabamos acreditando que não temos um lugar neste mundo, o que na língua inglesa é chamado de ser um outsider, ou seja, aquele que não pertence ao sistema. Muitos dos grandes clássicos da literatura lidam com este tema de forma magistral, nos mostrando personagens os quais, para leitores outsiders, viram ícones com os quais nos identificamos. As obras narram praticamente tudo do ponto de vista do protagonista, de maneira que é como se o leitor entrasse na mente do personagem, o qual se questiona sobre sua existência e seus propósitos neste mundo. Tais personagens, com sua introspecção e suas observações pertinentes sobre o mundo que os cerca, levam o leitor a reconsiderar suas próprias perspectivas, se identificando e crescendo com o personagem.
A literatura, quando regada com bons toques de psicologia e filosofia, é algo que faz o leitor mergulhar em si mesmo e compreender melhor a si mesmo, pois tais personagens são tão vívidos e reais que é como se estivéssemos travando proveitosos diálogos com eles, assim como se dialoga com um amigo próximo. Quando encontramos um personagem com o qual podemos dialogar durante a leitura, sabemos que encontramos um livro o qual nunca acabará de ser lido, pois cada releitura será uma nova redescoberta de nós mesmos. Portanto, se você ainda não leu algum dos livros da lista abaixo, leia-o agora e, caso já tenha lido todos, sempre pode ser uma boa hora para uma releitura, uma redescoberta do livro e principalmente de si mesmo.
A Redoma de Vidro (The Bell Jar) – Sylvia Plath
Este foi o único romance escrito pela grande poeta americana Sylvia Plath, o qual é praticamente autobiográfico, pois narra uma história bastante semelhante com fatos vivenciados por Plath. Publicado um mês antes do suicídio da autora, este livro conta sua história do ponto de vista de Esther Greenwood, uma jovem escritora a qual sofre problemas de depressão, assim como Plath, e que está fazendo um estágio de verão em uma grande revista em New York. No entanto, o estilo de vida da metrópole não agrada Esther. Então, a jovem retorna para sua casa em Massachusetts e resolve começar a escrever um romance. Porém, ela começa a ter dificuldades para escrever, não consegue dormir e pensar nas suas possibilidades para o futuro, como maternidade ou carreiras como estenografia, é algo que a assusta muito. Esther então tem uma tentativa de suicídio e a descrição de seus pensamentos e sensações tanto psicológicas quanto físicas após a tentativa é certamente de grande impacto. A autora descreve a depressão como uma redoma de vidro que se fecha sobre ela, a separando do mundo ao redor. O livro termina de forma um tanto positiva, com Esther esperando superar sua depressão, o que infelizmente não foi o que ocorreu com Plath, que nos deixou ainda jovem. Apesar de o tema ser um tanto forte, o livro contém grandes reflexões sobre uma jovem deslocada na sociedade, que se sente presa à convenções da sociedade, às expectativas impostas às mulheres e jovens na época, portanto sente sua liberdade limitada. As reflexões da personagem são de um tom lírico e por vezes até bem humoradas, o que deixa o tom da narrativa um pouco mais leve para tratar um assunto que pode ser forte para alguns leitores como é o tópico que envolve depressão e tendências suicidas.
O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye) – J.D. Salinger
Obra icônica que conta as desventuras do jovem Holden Caulfield. O livro começa com Holden contando como foi expulso da escola pela quarta vez, pois não consegue ter interessa nos estudos e os colegas de escola lhe parecem sempre superficiais e vazios. Holden tem dezesseis anos, e o livro é narrado em primeira pessoa, portanto a linguagem da narrativa reflete bem a idade do personagem, tendo um vocabulário muito simples e repleto de gírias dos anos 50 nos Estados Unidos. Holden é um jovem sonhador que, quando sua irmã mais nova o pergunta que carreira ele quer seguir, ele diz que quer ser o apanhador no campo de centeio: ficar na beira de um grande campo de centeio onde crianças brincam, perto da beira do campo que acaba em um abismo, para segurar as crianças que cheguem perto da beira e impedi-las de cair no abismo. Tal metáfora pode ser interpretada como Holden vendo a fase adulta como a perda da inocência e ele quer impedir que as crianças, como sua irmãzinha mais nova, percam a inocência e se tornem superficiais, como a maioria dos adultos que ele conhece. Holden não tem ideia do que quer fazer com seu futuro no que se diz respeito a perspectivas mais realistas e ele parece não se importar com isso na maior parte do tempo, mas tal atitude pode ser uma rebeldia de adolescente. Muitas passagens do livro revelam que ele tem leves crises depressivas, mais leves do que a de Esther do livro de Plath, mas ainda assim que afetam sua vida. Holden conta tudo isso de um lugar onde ele diz que foi levado para descansar, o que dá a entender que seja uma clínica psiquiátrica ou algo do tipo.
A Menina Submersa (The Drowning Girl) – Caintlín Kierman
A protagonista deste livro se apresenta como Imp, India Morgan Phelps, e ela é uma jovem órfã e esquizofrênica. Imp é tão outsider que ela nem sequer tem um computador e a história se passa nos anos 2000. Imp escreve e pinta quadros e, por algum tempo, tem uma namorada chamada Abalyn, mas tudo se torna mais peculiar e nebuloso quando ela conhece uma mulher chamada Eva. A narrativa pode soar um tanto confusa, propositalmente, pois Imp deixa de tomar seus remédios por alguns dias e ela tem uma estranha obsessão por Eva, quem ela acredita ser uma sereia, diz que a ter conheceu duas vezes e, por algum motivo, Eva a remete a um quadro chamado A Menina Submersa, pelo qual Imp era obcecada desde pequena. Enfim, é um livro surreal sobre memórias, sobre a duplicidade delas e sobre como fantasmas nem sempre são criaturas que assombram mansões antigas, mas mentes humanas.
O Lobo da Estepe – Hermann Hesse
Este romance é contado de diferentes formas: primeiro, em terceira pessoa, pelo filho da dona da pensão onde o protagonista Harry Haller se hospeda, ou seja, uma visão externa que torna Haller um mistério a ser observado, admirado e talvez um dia compreendido: um homem de cinqüenta anos, solitário e cercado de livros. Depois, o livro é narrado através da perspectiva do próprio Harry Haller, o protagonista da narrativa que se autodenomina como o lobo da estepe. Harller é um homem intelectual e que não acredita pertencer a lugar algum neste mundo, pois considera a sociedade medíocre e superficial (ecos de um Holden Caulfield de 50 anos?). O protagonista um dia se depara com um folheto chamado Tratado do Lobo da Estepe, uma reflexão sobre a natureza humana e suas diversas faces, com a qual ele claramente se identifica e a qual o ajuda a compreender a si mesmo (e provavelmente faz o mesmo com os leitores de Hesse!). O protagonista também encontra um lugar chamado Teatro Mágico – só para loucos, só para os raros, como diz na entrada do peculiar lugar. Lá ele encontra Hermínia, Maria e Pablo, personagens também bastante únicos que influenciam a personalidade de Harlley de variadas formas e com os quais vive sensações que desconhecia, pois o lugar o permite descobrir que há mais do mundo do que ele aparenta.
Memórias do Subsolo – Fiodor Dostoiévski
Um clássico da literatura russa e mundial, este livro conta os delírios e reflexões de um homem que se diz mau, doente, desagradável. Enfim, o narrador tem sérios problemas os quais podem ser comparados aos de Harry Harller, Imp, Holden e Esther: ele não se encaixa no mundo onde vive, não acredita haver espaço psicológico para alguém como ele na sociedade. No entanto, sua perspectiva se diferencia dos anteriores desta lista por alguns detalhes, os quais fazem com que ele mais se pareça com o narrador de O Demônio da Perversidade de Poe do que com qualquer outro personagem: a perspectiva do narrador desta obra é uma das primeiras da literatura, antes mesmo dos estudos de Freud, a adentrar o inconsciente humano, seguindo o modelo narrado por Poe no conto mencionado acima, pois ambos focam suas obras em um narrador cujo problema é um peculiar excesso de consciência de sua inconsciência, ou seja, um acesso ao saber relacionado a fatos como o porquê de seres humanos serem tentados a cometer atos como pular de abismos só pela sensação da queda ou fazer qualquer coisa sem resultados positivos, só por fazer mesmo – só para sentir que são seres vivos, e não máquinas em um sistema pré-projetado. Ou seja, ainda que o foco do livro seja mais psicológico, ainda há uma forte crítica à sociedade que cerca o narrador e seus mergulhos no inconsciente podem ser motivados pela monotonia do que o cerca. Enfim, interpretações à parte, este é um livro essencial para qualquer bom leitor de boa literatura.