Autor: Vinícius de Moraes
Edição: Serviço Nacional de Teatro, 1968
Toda tragédia é moral. Elas sempre nascem de alguma intransigência inflexível que impede que se vislumbre qualquer outra possibilidade dentro de um horizonte. Na maioria dos casos, duas forças se equivalem, se opõem, e nesse embate, apenas uma pode existir. Nesse caso, a tragédia é ver a derrocada de uma das forças sem que haja, entretanto, a vitória de outra força. A que se aniquila, de certa forma, retira o valor da que vence e tudo parece perder o sentido. É o que pode se ver em As Feras de Vinícius de Moraes.
A peça teatral As Feras (1966) do poetinha, é uma tragédia em três atos que conta a história do casal de nordestinos Francisco e Maria José. Com a seca, Francisco pega um dinheiro emprestado e vai para o Rio de Janeiro tentar um emprego e uma casa, para, quem sabe, trazer a esposa e o filho para uma vida na cidade grande. O rapaz pede a seu tio Tomé de Paula para cuidar da mulher e do menino. O tio, no entanto, ao levar comidas para a moça, lhe dá uma grande quantidade de bebidas e leva-a para cama. Francisco recebe a notícia e começa a oscilar entre o perdão e a vingança.
A peça fala sobre homens sem lugar no mundo, seja no sertão ou na cidade grande, que sofrem de uma invisibilidade que atormenta a todos. Por isso, precisam, de um lado, de grandes quantidades de bebidas para aguentar as mazelas da vida, produzindo assim uma auto-invisibilidade, e, por outro, de regras sociais rígidas, para tornar suportável esse mundo sem as leis de Deus. Isso porque gradualmente a crença nessa força superior se esvai, na medida em que mundo e justiça andam sempre afastados uma coisa da outra.
Essa lei do sertão, espécie de misticismo da terra, substitui a lei divina e parece ser a única forma de controle de moral e honra que existe entre eles. No entanto, é uma lei profundamente machista, paternalista e que tem sempre como alvo a mulher, seja na violência propriamente dita ou na impossibilidade de que ela tenha voz. Apesar disso, lutar contra essa lei, parece ser vislumbrado ao fim de um túnel:
A lei do sertão era matar. Mas eu tenho outra lei dentro do meu coração. Chega de sangue. Eu quero paz para trabalhar.
Assim, se força a dualidade trágica da obra: vingança ou perdão? Essa solução que parece impossível revela apenas mais um lado de todo brasileiro pobre, principalmente o sertanejo: a paciência, a espera. É a chuva que não vem, é o dia que promete melhorar, é o governo que passa, é a colheita. É algum mistério que ainda precisa existir, nem que como uma pontinha escondida em um canto escuro, apenas para dar esperança para esse povo sofrido:
Paciência. Eu vou ter paciência. Nem que crie uma pedra no meu peito, eu vou ter paciência. Nem que esses olhos, e esses pés, e essas mãos não queiram ter paciência, eu vou ter paciência e esperar.
Vinícius de Moraes, em As Feras, compõe uma obra em que a injustiça aparece por todos os poros, entretanto, o faz de um lugar privilegiado, do homem da elite, com dinheiro, e que não se apropria da dor a não ser de maneira exemplar e poética. O machismo exagerado da obra, talvez impeça que ela fosse montada hoje em dia, pois sua violência é tão latente que em alguns trechos diversas vezes repetidos, busca-se uma válvula de escape para tamanho sofrimento. A escrita, apesar disso, é de um registro necessário, sempre com a carga poética do poetinha e, se encaixando dentro de uma tradição do teatro brasileiro, se torna uma experiência que, bem ou mal, não nos deixa de tentar se aproximar um pouco desse humilde casal, Francisco e Maria José.