A amizade feminina encontra-se numa área da literatura, do cinema e de outras formas de expressão como o Triângulo das Bermudas. Sabe-se de sua existência, estuda-se sobre ela – uma vez que a ciência até ressaltou seus benefícios –, mas tudo o que ocorre entre duas mulheres que procuram se relacionar sem competitividade, com carinho e cumplicidade, é um território pouco visitado. Não raramente, esse vínculo é tema coadjuvante, mesmo em obras cuja protagonista é uma personagem feminina.
Nas comédias românticas, por exemplo, temos uma mulher perfeita: com um ótimo cabelo e um emprego dos sonhos. Existe seu interesse romântico e todo o enredo que circunda esses dois seres. É de se esperar, entretanto, que “a amiga” sirva para estar do outro lado da linha e ouvir entusiasmada “o que aconteceu na noite passada”, falar coisas espirituosas e cômicas – mas sempre sobre essa relação, o romance entre o homem e uma mulher. Esse filme genérico, entretanto, não passaria no teste de Bechdel, um avaliador da representatividade de mulheres em obras cinematográficas de acordo com três fatores:
- Nesse filme existem duas personagens femininas?
- Que conversam entre si?
- Sobre algo que não é um homem ou relacionado a ele?
A simplicidade do teste apenas evidencia como uma humilde conversa entre mulheres sobre qualquer outra coisa (QUALQUER outra coisa), como carreira, animais ou família está completamente distante do imaginário dos roteiristas – pelo menos, daqueles cujos filmes conseguem projeção. Na literatura, todavia, campo em que há maior expressividade das mulheres (mesmo que ainda limitado a mulheres brancas e de classe média ou alta) há maior abordagem sobre a complexidade da amizade feminina. Esse é o caso da obra de Elena Ferrante, uma das autoras mais “misteriosas” desse século. Primeiramente, ela utiliza o citado pseudônimo e se recusa a mostrar o rosto e a comparecer a premiações, apenas concedendo entrevistas por e-mail, sempre por intermédio de suas editoras italianas. Possui publicada a coletânea de ficções Crônicas do Mal de Amor publicadas no Brasil separadamente (Um amor incômodo, Dias de abandono e A filha perdida), o livro infantil Uma noite na praia e a (semi)autobiografia Frantumaglia (2003) e, finalmente, a tetralogia napolitana A amiga genial, assunto desse texto, cujo primeiro livro foi publicado em 2011 na Itália e em 2015 no Brasil.
Do que pouco se sabe de Ferrante, destaca-se Nápoles, a cidade natal da escritora (até onde sabemos) e palco de um relato honesto e límpido da amizade feminina, como o lido em A amiga genial. O prólogo do primeiro romance da tetralogia, intitulado “Apagando os vestígios”, consiste na narradora e personagem Elena Greco, que, após saber do desaparecimento voluntário da melhor amiga Lila e entendê-lo como uma maneira de apagar seu passado, decide relatar toda sua história. O primeiro livro, após o prólogo com gostinho de epílogo, se desenrola com a infância e adolescência de Elena Grego e Lila Cerullo no subúrbio da Nápoles pós-guerra, em as famílias são divididas pelas ocupações dos patriarcas (a família do sapateiro, a família do contínuo, a família do confeiteiro, etc).
Sob o aguçado olhar de Elena, conhecemos a efervescente Lila, que ainda criança se destacava pela sua inteligência e sua falta de filtro. A amizade entre as duas se inicia de modo difícil, como um embate entre habilidades e carisma, que se consolida quando o destino decide cruzar suas vivências em momentos significativos, como uma visita à casa de Dom Achille, o homem mais temido da vila, para resgatar suas bonecas perdidas e uma viagem para além do bairro a fim de conhecer o vulcão Vesúvio e a parte populosa da cidade. Apesar do complexo começo, Lila e Elena compartilham a paixão pelos estudos de latim, pela leitura e também sonhos de riqueza e ascensão social.
“Na época já havia algo que me impedia de abandoná-la. Não a conhecia bem, nunca tínhamos trocado uma palavra, mesmo competindo continuamente entre nós, na classe e fora dela. Mas eu sentia confusamente que, se tivesse fugido com as outras meninas, lhe teria deixado algo de meu que ela nunca mais me devolveria”.
– Página 26, A amiga genial
Durante a adolescência, seus caminhos se divergem – enquanto Elena consegue a oportunidade de continuar seus estudos de ensino fundamental num liceu clássico no centro da cidade, Lila se interessa pelo ofício do pai e decide trabalhar em sua sapataria, desenhando seus próprios modelos e investindo sua energia na manufatura dos mesmos. Seus corpos sofrem com a puberdade: Elena, antes loira com pele de pêssego, ganha curvas, espinhas e um cabelo castanho; Lila, antes pouco interessante aos olhos masculinos, obtém muita beleza e começa a ser interesse de metade dos rapazes da vila. A relação de cumplicidade entre ambas, porém, abala-se pouco. Com a mudança de interesses durante adolescência, as mulheres sofrem de modo crescente o estigma da competividade que deveria se instalar entre elas.
Em A amiga genial, reconhecemos os bizarros e normais (mas pouco refletidos) dilemas de uma mulher comum, cuja vivência numa sociedade patriarcal limita suas perspectivas: família ou carreira, amizade ou casamento, beleza ou inteligência, puritanismo ou libertinagem. Em outras palavras, dilemas que refletem a insistência de uma sociedade numa visão dicotômica das mulheres – essas que, mesmo constituindo metade de população, ainda são percebidas por prismas maniqueístas. Lila, muitas vezes erroneamente vista como “a amiga má” por Elena, demonstra como as expectativas distorcem o verdadeiro entendimento dos fatos. Elena, com sua narrativa extremamente parcial, faz refletir sobre as escolhas que fazemos para apenas parecer – não sentir e saborear.
Lila e Elena transbordam uma humanidade terrível que desafia um retrato bidimensional das mulheres e dos laços que elas estabelecem entre si. Ambas com suas potências solares – mas que não ofuscam as atitudes silenciosamente destruidoras – persistiram na honestidade (por vezes, brutal) para desenhar sua união. Ainda, dada a complexidade dessa relação que propulsiona os quatro romances, a alcunha de “amizade” parece insuficiente. Em episódios em que a profunda empatia, o erotismo e uma rivalidade se manifestam simultaneamente entre Lila e Elena, a própria linguagem parece demasiado limitadora ao definir o que ambas compartilham como uma “amizade” pura e simplesmente. No pior dos casos, o que A amiga genial realiza é uma constante ressignificação de termos. O que previamente conhecemos como “amizade entre mulheres” infla-se de ambiguidades e de outras subjetividades, como a literatura de uma perspectiva feminina, sobretudo a de Ferrante, não deixaria de propiciar.