Autor: Otávio Bravo
Editora: Chiado
Ano: 2018
Páginas: 252
“A tua pequena dor
quase nem sequer te dói
é só um ligeiro ardor
que não mata
mas que mói.
É uma dor pequenina
quase como se não fosse.”
Pequena Dor, Rui Veloso
Não consegui começar esse texto sem me fazer perguntas simples, óbvias – no entanto, essenciais – que o término dessa leitura me deixou como rastro: O que é o amor? Como é o amor? Quando é amor e quando é O amor? De que matéria é feito, de que tempo, de que lugar? Se a história da literatura nos mostra que o amor é, via de regra, o ponto fraco de uma estrutura social com base na lei, na força e no poder, também é verdade que é apenas no amor que um outro tipo de formulação é possível: o amor se dá como potência, como dobra, como possibilidade de desfazimento de um em prol de um outro. O amor é, no fim das contas, uma política: ele formula uma comunidade e, por isso, uma saída para o mundo. Mas que ele dói…como dói.
Travessuras de Minha Menina Má – livro II, de Otávio Bravo, é um romance livremente inspirado na obra quase homônima de Mario Vargas Llosa: Travessuras da Menina Má. Se no primeiro volume de Bravo, não chegamos a conhecer a tal menina, mas acompanhamos a infância, adolescência e começo da vida adulta de Victor, seu personagem principal, neste volume II não só conhecemos Duda, a tal menina má, como acompanhamos toda a sua relação com Victor, desde o primeiro momento, do apaixonamento, até um possível fim em um hotel na Cidade do Cabo. Mas será mesmo o fim?
Separo aqui o momento do primeiro olhar de Victor para Maria Eduarda, a Duda, por achar uma das mais belas descrições da literatura:
Foi neste momento que Deus deitou graças à rota do amor e, acertando-lhe o rumo, mo revelou novamente.
Sem nenhum motivo especial, meus olhos se desviaram à esquerda e fitaram, de esguelha, a jovem que estava rabiscando alguma coisa na pequena mesa de anotações contraposta aos caixas eletrônicos.
Não sei se, a olhos alheios, era mulher bonita. Mas, aos meus, haveria mais nenhuma tão linda no Universo.
O que se destaca também é o caráter plural que a menina má tinha para Victor, como se fosse uma espécie de pessoa-coral, de multidão, de comunidade, como se ela, diante dele, materializasse uma geração de mulheres de nossa história e que, a própria História, agora com H maiúsculo, estivesse se renovando na pele daquela menina:
Parecia mesmo bem jovem, quase como se tivesse recusado deixar a adolescência, mas, ao mesmo tempo, era Laura de Petrarca, Isabel Garcilaso e Matilde de Neruda. Tinha traços de dona do universo (…) .
O livro, narrado em primeira pessoa por Victor, nos apresenta uma Duda vista por essa lente do amor, esta espécie de lupa da cegueira em que ao mesmo tempo em que amplia ao máximo o objeto amado, ainda consegue manter e fazer permanecer uma série de áreas turvas, zonas inexploradas da subjetividade humana. Duda, assim, desde o começo aparece como uma figura ambígua: entre a tristeza de seu passado nebuloso e a alegria e euforia de um corpo nietzschiano, que se entende na beira do abismo e que percebe que é apenas nos excessos que algum tipo de alegria pode se dar. O passado da moça com um caso um tanto quanto nebuloso de abuso infantil e abandono paterno deixou traumas que não foram totalmente desvendados nem por ela que apenas sofria, nem por Victor que não entendia se a pequena dor da moça era por conta do trauma ou algum mistério do universo. O que ele sabia dela era que ela:
Estava sozinha no mundo.
Era sozinha no mundo.
E que, por isso, talvez, ele era perfeito para ficar a seu lado. Talvez por isso, Victor, já chegando na meia idade, acompanha a menina má pronto a perdoar e aceitar seus exageros, entendê-los através das voltas que a alma dá, mesmo que ela roube seu cartão de crédito em viagem para Ásia ou, simplesmente, raspe todo dinheiro guardado em sua conta bancaria para viver com outro em qualquer outro lugar do mundo. Mas o olho, pelo menos dentro desta lupa da cegueira, mesmo quando capaz de ver, é incapaz de enxergar. O mundo, parece, está sempre dois passos atrás no corpo de quem ama.
E não havia criança maior do que um homem apaixonado.
O mais interessante na escrita de Otávio Bravo é a forma como sua linguagem consegue, ao mesmo tempo, se metamorfosear para abranger todos os tipos de temáticas exploradas desde o primeiro volume e ainda assim manter uma linha precisa, uma espécie de coesão e coerência na escrita que lhe permite, de certa forma, dar ao livro uma ideia de unidade desdobrada ou, até, de várias obras dentro de uma, como se estivéssemos diante, simultaneamente, de uma biografia e a história de muitas gentes, gerações, cartografias do espaço. Neste sentido, friso as descrições minuciosas: temos realmente algo como um mapa, uma trajetória ou aventura sentimental e espacial. O livro, somado ao anterior, ganha tons quase de uma boneca russa em que a história de Duda se insere no interior de um Victor que perde esposa e filha, enquanto que o Victor com esposa e filha precisa se encaixar no Victor que perdera o irmão. Os desdobramentos parecem ser múltiplos mesmo quando são centrípetos e convirjam para o mesmo ponto.
No fim do volume, o menor da trilogia, chegamos a uma simultaneidade de sentimentos de Victor que, ao que tudo indica, será aprofundado no volume seguinte. Ao mesmo tempo em que a menina má se vai, ou seja, sua vida no corpo e na alma de Victor, a partir de agora, não será mais como presença, mas como uma presença-ausente, além disso, Victor começa a chegar no limite da vida adulta. Uma vida de dificuldades e dedicação que, ao que parece, precisará recomeçar, renovar energias e forças. Depois de Duda, o mundo que conhecíamos não pode ser o mesmo. Este é o poder e a força da menina má: uma avalanche, um maremoto, que dá sentido e cores ao mundo, mas devasta a terra por onde quer que passe. Vamos ao volume III!