Sofri, sorri e chorei ao entrar em contato com essa luta travada não como metáfora, mas como realidade, no caso do cantor Apolo, retratado em Morro Doce, sua biografia escrita por Bianca Vasconcellos.
Morro Doce, publicado pela editora Rua do Sabão em 2025, conta a história de Apolo Pinheiro, um artista, cantor e intérprete. Um homem trans que viveu preso durante grande parte da vida em A., um corpo feminino que recebeu ao nascer. Bianca Vasconcellos assume a função de contar a história desse artista magnífico morto aos 29 anos em 2018. Escrita em primeira pessoa, a obra ficcionaliza a vida de Apolo, narrando fatos e histórias de sua vida.

Mas quem era Apolo Pinheiro? A história do cantor começa quando ainda era A., roqueira que fazia sucesso como a melhor cover de Cássia Eller no Brasil, chegando a se apresentar no programa do Faustão e em bares e casas de show pelo país afora. A semelhança física de A. com a cantora carioca falecida em 2001 e o timbre de voz, impressionavam fãs e a imprensa por onde passava.
Porém, A. guardava um desejo: se livrar da disforia que tornava sua imagem no espelho o maior incômodo de sua existência.
“Se é para me apresentar a um mundo que vai me considerar um estranho, vou caprichar num belo escudo. O nome do deus da beleza, da inspiração artística, o venerado deus do sol. Saio de minha caverna escura para receber a luz de Apolo, muito prazer.”
Morro Doce é o relato de Apolo, o narrador na primeira pessoa pela escrita de Bianca Vasconcellos. Apolo deixa o corpo de uma mulher lésbica, já marcado por preconceito, para assumir outras questões com família, a sociedade e a própria esposa com quem estava casado antes da transição.
“Saca finalmente que a chave que deve ser acionada é a do afeto”.
Mas enquanto A. era famosa por seus shows, Apolo tinha que refazer sua rota em direção ao palco. Ficou inseguro e teve medo.
“Estou me cagando de insegurança para voltar aos palcos com esse timbre enlatado. E se me chamarem pelo nome da falecida? Carol sabe que estou me borrando todo, não preciso dizer. E não é só a minha voz, tem os gestos também. Tenho medo de não estar masculinizado o suficiente e, no meio do show, me imagino topando com um transfóbico me perguntando que porra de viado é esse. Tremo só de imaginar as pessoas me olhando como se eu fosse uma deformidade artística.”

É com muita sensibilidade que Bianca Vasconcellos vai desenhando este artista novo, cheio de inseguranças, mas também de força, que surge por dentro de A.. Apolo é um ser da liberdade, mas nem por isso deixa de enfrentar seus fantasmas:
“Tanto tempo dentro de A. sem saber se um dia veria a luz de um holofote apontada para a minha pele de Apolo me faz pensar que estava mais acostumado ao medo que à liberdade.”
Essa liberdade também está expressa em sua pele, como destaca Bianca, através de uma tatuagem de Fernando Pessoa que marca não só o passado, mas principalmente o futuro de Apolo: “todos os sonhos do mundo”, abaixo do pescoço, tatua uma esperança: “não importa o preço que eu pague, o meu negócio é viver”.
No decorrer da obra, Bianca destaca também pessoas que ajudaram Apolo em sua transição. Um deles é o grande João Nery, o primeiro homem trans do Brasil, por meio de seu livro “Viagem Solitária”.
Uma coisa que eu achei interessante no livro, e isso é apenas uma curiosidade, é que Bianca insere no decorrer das páginas uma canção inédita composta por Apolo Pinheiro. Trata-se de “Mundo Cão” que é apresentada com sua letra em caixa alta e um QR Code para que possamos ouvir diretamente do canal no Youtube de Apolo, agora com dois “l’s” como ele gostava quando vestia a pele de artista. Isso faz a obra não só existir ali, no papel, mas surgir viva pelo mundo das redes, com certeza um fato que enriquece Morro Doce.
E vamos descobrindo com o livro este novo sujeito que renasce para o mundo da música, para a cena do rock nacional . Ele é super bem recebido pelos bares ao montar um show de covers de Nando Reis e Cássia Eller. Até que a vida o surpreende com uma doença fatal.
–Fala mais comigo, acho que estou morrendo.
–A gente não morre, evapora. Desaparece e vira lembrança. Foi assim comigo, vai ser com você, com todo mundo. A gente vira um arquivo de memórias e, depois, com sorte ou vontade, alguém lá na frente dá um play. E assim nossa energia volta a circular neste mundo cheio de escrotos.

Com sensibilidade, a jornalista Bianca Vasconcellos amplifica a voz de um jovem que lutou incansavelmente pelo direito de existir sem barreiras. Uma história poderosa sobre um homem que escolheu a liberdade e a felicidade, sem jamais desistir, como reflete em sua música autoral, “Mundo Cão”.
Um livro que desperta sensibilidades e aponta o afeto como uma das principais pontes para uma vida que possa se realizar plenamente. Apolo descobre que o amor que sente pelo mundo e pela arte é retribuído quando esse amor vira música. Um livro que inspira!

