Protagonizado por Andréa Beltrão, Lady Tempestade conta a vida de uma advogada nordestina que ousou não esquecer a história brasileira.
Logo após sair da escola em que dava aulas, no dia 2 de abril de 1964, Mércia Albuquerque se depara com a seguinte cena: um homem sendo arrastado pelo jipe do exército brasileiro, à luz do dia, sem qualquer reação das pessoas. O impacto daquela tortura é tamanho que Mércia, também advogada, abandona imediatamente a magistratura e se põe a defender os presos políticos.
“Lady Tempestade”, espetáculo dirigido por Yara de Novaes, em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo, usa os diários de Mércia para compor sua dramaturgia. Mais do que apenas expor o horror das palavras ali escritas, o texto de Silvia Gomez joga com a perspectiva de que a tal imagem do homem sendo arrastado por forças do estado não teve fim. No Brasil, passado, presente e futuro se igualam: “essas coisas aconteceram acontecem acontecerão”, diz A., personagem interpretada por Andrea Beltrão. A ausência de vírgulas é proposital. Sem pausas, os acontecimentos são empurrados para baixo do tapete e tudo que resta, ao que parece, é sobreviver.

É muito inteligente em “Lady Tempestade” o papel da memória na própria sobrevivência humana, como se o ato de esquecer colaborasse para a criação da memória. “Esquecer é um tesão”, vai dizer A. (lê-se A-ponto) ao longo da peça. Há beleza nisso também. O problema é que tem coisas que não podem ser esquecidas. São falésias da mente, e lembrar, portanto, seria como desgastar a própria lembrança. Em “As formas de esquecimento”, Marc Augé escreveu que “as lembranças são esculpidas pelo esquecimento como os contornos da costa pelo mar” e a conexão dessa frase com o texto de Silvia Gomez se revela parte importante da erosão-cênica da peça.
Para dar conta das emoções envolvendo a vida de Mércia Albuquerque, Gomez usa um recurso familiar. Durante a madrugada, A. recebe a ligação de R. dizendo que em breve um pacote com os diários da advogada serão entregues em sua casa.
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A abreviação emula o modo de comunicação nos tempos da ditadura. Nada podia ser plenamente nomeado sob o risco de prisão. Mas, sem nomes, os corpos também ficavam mais difíceis de serem reconhecidos. Sob essa aura de silêncio, as rasuras tornam-se sinônimos para rachaduras, ranhuras, como aquelas que desenham as falésias ante o mar. Essa composição da existência ausente será avalizada pela personagem que parece negar esse chamado à memória. Se “A.” brinca com as iniciais do nome da atriz que protagoniza o espetáculo e R. o nome de Roberto Monte, ativista que entregou os diários de Mércia para Yara de Novaes, a ideia parece justamente a de incitar o papel dos artistas como dutos de “lembranças” e “esquecimentos” que abastecem um país, fazendo “Lady Tempestade” sair do aspecto sólido das biografias e ir para o estado gasoso do teatro. A. sabe que ao ler os diários de Mércia vai se transformar. E, pela dubiedade proposta pela peça, pode ser tanto a personagem quanto a atriz, já que é impossível adentrar o horror e a brutalidade da ditadura sem ser atingido. Ao mesmo tempo, como todos nós podemos nos dar o direito de não lembrar desse período se, continuamente, ele ameaça voltar?
O brilhantismo da encenação de Yara de Novaes é estabelecer essas peças — processo criativo, história, ditadura, biografia e teatro — de modo emotivo. A luz é fria, a disposição das cadeiras no palco leva parte da plateia para dentro da cena, os elementos são poucos, colaborando para a tensão do ambiente, quase como uma sala de interrogatório. Francisco Beltrão, filho de Andreia e outra esfera desse metateatro que cria um “diário dentro do diário”, participa como filho de “A.”, como operador da trilha, o responsável por dar som ao inaudito e, em alguns momentos, se encaixa como uma espécie de “ponto” de A. No teatro, essa figura ajuda os atores a lembrarem das falas. Só que a sofisticação da dramaturgia e da encenação de “Lady Tempestade” coloca o teatro como o lugar “gentil com os fantasmas”, o espaço no qual a vida de Mércia pode ser ficcionalizada sem perder o significado de sua trajetória, contando a luta dessa mãe por outras mães. Em cena, Francisco inverte a posição de um ponto, pois sua presença tem significado de, quem sabe, levar essa nova geração de “filhos” a ouvir outros “fantasmas”.

Nessa mistura entre vozes e metalinguagens, dá para dizer que, sem a ficção, a realidade se deteriora. Esta aí uma das falésias mais bonitas de “Lady Tempestade”, já que o diálogo da arte com a resistência e, sobretudo, com a memória da nossa história se torna o ato político indissociável do próprio ofício e o ato de criar, ou seja, de fazer teatro, será a máquina do tempo que nos permitirá viajar tanto para aquele dia 2 de abril, quanto para 16 de março de 2014, quando PM’s do Rio de Janeiro arrastaram o corpo de Cláudia Silva Ferreira, uma mulher, mãe e preta. Ou ainda, para aqui e agora, para esse Brasil em que a anistia aos golpistas do dia 8 de janeiro de 2024 pauta as coisas que “aconteceram acontecem e acontecerão”.
Embora essa carga histórica seja fundamental, o espetáculo não se furta a isso, fugindo das vozes panfletárias que funcionalizam a arte até que ela se rebaixe a algo “necessário”, já que a dor inscreve essas personagens em qualquer contexto. O ato político é, na verdade, poético justamente por deixar que as histórias sejam encontradas, como um diário que clama para ser lido, e revelar a parte oculta de nós.
É por isso que a última cena do espetáculo é brutal. É por ser um gesto cênico que vaza do palco e vai desenterrar personagens mortos (da platéia, quem sabe). Augé tem uma citação que cabe bem aqui: “diga-me o que esqueces e direi quem tu és”. Ao contar a história de Mércia Albuquerque, “Lady Tempestade” diz o tipo de país que fomos, somos e podemos ser. Em todos os sentidos.
Ficha Técnica
com Andréa Beltrão
Direção: Yara de Novaes
Dramaturgia: Silvia Gomez
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de luz: Ricardo Vívian e Sarah Salgado
Criação e operação de trilha sonora: Chico Beltrão
Desenho de som: Arthur Ferreira
Figurinos: Marie Salles
Assistente de direção: Murillo Basso
Assistente de cenografia: Alice Cruz
Operador de luz: Sarah Salgado e Luana Della Crist
Direção de Palco e Pintura de Arte: Antônio Lima
Contrarregra: Nivaldo Vieira e Márcio Rodrigues
Fotografia: Nana Moraes
Fotografia de Cena: Nana Moraes e Felipe Ovelha
Vídeos: Gil Tuchtenhagen
Projeto Gráfico: Fabio Arruda e Rodrigo Bleque | Cubículo
Assessoria de Comunicação: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicação
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Administração do Perfil Andrea Beltrão (Instagram): Rosa Beltrão
Gestão de Performance: Lead Performance
Produção: Quintal Produções
Diretora Geral: Verônica Prates
Coordenadora de Projetos: Valencia Losada
Produtora Executiva: Camila Camuso