Quando Machado de Assis publicou, em 1882, a novela O Alienista, ele já dominava com precisão a ironia, o sarcasmo e a fina arte de contar mentiras que dizem verdades. Tendo deixado para trás a fase romântica de sua obra e já se estabelecido como o maior representante do realismo brasileiro, Machado ofereceu aos leitores, em pouco mais de cem páginas, um tratado corrosivo sobre vaidade, poder, autoritarismo e, sobretudo, loucura – mas não a do hospício. A loucura da razão.

No centro desse microcosmo está o Dr. Simão Bacamarte, médico formado em Coimbra, respeitado por suas credenciais, e que, de volta à sua Itaguaí natal, decide aplicar seu saber para fundar a Casa Verde: um asilo de alienados, cuja missão seria tratar cientificamente as doenças mentais. Ao menos, esse é o projeto. Na prática, trata-se de um experimento social conduzido por alguém com um controle absoluto das ferramentas de repressão – uma espécie de ditador ilustrado, guiado por uma lógica que, a cada passo, afasta-se mais do mundo real e adentra o terreno do delírio racionalizado.
O nome do protagonista, por sinal, é o primeiro gesto irônico de Machado. “Simão Bacamarte” traz em si um trocadilho implícito: Simão, símio, macaco; Bacamarte, arma de fogo de cano curto, símbolo de violência descontrolada, de força sem precisão, usada então por muitos exércitos e também para a caça. O que Machado nos propõe, já no batismo da personagem, é a imagem de um primata empunhando uma arma de fogo: uma criatura sem discernimento manuseando um objeto de destruição. Ou, em termos mais contemporâneos, o perigo de dar poder a quem não tem a menor ideia de como usá-lo — nem humildade para reconhecer isso.
A autoridade do ignorante

Bacamarte é, sem sombra de dúvida, um homem letrado. Estudou nas melhores universidades, é fluente nos jargões da ciência, tem vocabulário erudito e postura grave, e “leu os árabes”. Ele também é inteligente – sobretudo no que diz respeito a ser político. Mas Machado, sempre cuidadoso, não deixa que confundamos erudição com sabedoria, nem diplomas com competência. Bacamarte é a encarnação do tecnocrata obcecado por um ideal, para quem a realidade deve curvar-se diante do método. A sua “ciência” não está a serviço da sociedade, da empatia ou do bem comum — ela está a serviço de si mesma. Quando escolhe quem será internado na Casa Verde, não o faz por necessidade alheia, mas por conveniência do seu raciocínio. E quando esse raciocínio falha, é a realidade que precisa ser revista — nunca ele.
Na primeira fase do experimento, Bacamarte interna os “loucos evidentes”: mendigos, alcoólatras, pessoas que falam sozinhas. Mas a normalidade é um terreno escorregadio, e a classificação de loucura logo se expande. Em pouco tempo, gente perfeitamente sensata e racional é enviada ao manicômio — pois o médico expande tanto a sua definição de loucura que, eventualmente, chega a conclusão, em seu raciocínio torto, de que é a normalidade absoluta que revela o verdadeiro desvio. A lógica é impecável: se todo ser humano tem falhas, quem não tem nenhuma deve estar escondendo algo. Ou seja: quanto mais virtuoso o indivíduo, mais perigoso ele é. Um círculo vicioso que serve para justificar todo tipo de prisão arbitrária, e que nos lembra, com assustadora precisão, de tantos regimes reais — e atuais — onde o poder se mascara de razão.
Ao nomear Bacamarte com um trocadilho entre símio e bacamarte, Machado aponta para essa figura perigosamente familiar: o homem que tem em mãos um aparato de poder (seja ele político, científico, militar ou ideológico) e não tem estrutura emocional, nem formação ética, para lidar com isso. Não se trata necessariamente da maldade, mas da ignorância, do narcisismo e da vaidade – mas, acima de tudo, da franca incompetência. Bacamarte é, como tantos outros personagens da história e da vida, um ignorante educado, um imbecil ilustrado. E, portanto, perigosíssimo, em particular na medida em que é investido de poder.
A ciência como tirania

É fundamental notar que Machado não está criticando a ciência em si, mas a pseudociência travestida de autoridade. Simão Bacamarte representa a apropriação do discurso científico por quem o usa para justificar suas convicções pessoais — e não para chegar a uma verdade. Quando a Casa Verde é construída, ela é a promessa de progresso, de racionalidade aplicada. Mas seu funcionamento revela algo muito diferente: um espaço onde a lógica vira instrumento de opressão, e a autoridade é inquestionável.
Toda a população de Itaguaí se submete ao julgamento de Simão Bacamarte porque ele fala em nome da ciência. Ninguém ousa confrontá-lo — nem o poder público, nem os religiosos, nem a população. Afinal, ele sabe o que está fazendo. Tem diplomas. Fala bem. É cientista. O resultado é o aprisionamento progressivo de toda a cidade, num ciclo de paranoia institucionalizada que termina por abocanhar até aqueles que o haviam apoiado.
Não é coincidência que Bacamarte encerre a narrativa internando a si próprio. Depois de todas as suas experiências, o médico chega à conclusão de que ele é, de fato, o único completamente são. E que isso, por sua vez, é a verdadeira forma de insanidade. A lógica circular se fecha, e a tirania da razão atinge seu ápice: o homem que detinha o poder absoluto sobre o diagnóstico da loucura conclui que o único louco, no fim, é ele. E, num gesto de coerência perturbadora, sobretudo por ser cega – a lógica, mais uma vez, é perfeita, mas a capacidade de Bacamarte de admitir a possibilidade da sua própria falibilidade é de tal forma inexistente que ele pensa em trancar a si mesmo em um manicômio antes de imaginar que talvez a sua teoria, de maneira geral, não seja correta -, interna-se. A Casa Verde torna-se seu túmulo – físico e simbólico.
O gesto final pode ser interpretado de várias formas, mas uma delas, talvez a mais irônica, é a seguinte: mesmo diante da evidência de sua falência ética e social, Bacamarte ainda se acredita fiel ao método. Ele não reconhece o erro da empreitada, mas apenas seu lugar dentro dela – partindo, mais uma vez, do princípio de sua infalibilidade ser tão absoluta que se torna patológica de acordo com sua própria lógica. É o delírio do poder travestido de racionalidade. O símio com a arma, mesmo no fim, acha que está atirando com precisão. E depois de disparar contra todos, dispara em si mesmo.
Poder e incompetência: uma aliança letal

O problema central de O Alienista não é o autoritarismo puro e simples, mas sua junção com a incompetência. Há uma diferença entre o poder na mão de um tirano inteligente e o poder na mão de um tolo que se acredita gênio. O primeiro é um inimigo temível, mas compreensível. O segundo é imprevisível, perigoso, e — como bem sabe quem já tentou argumentar com um imbecil empoderado — absolutamente impermeável à crítica.
Simão Bacamarte acredita que está fazendo o bem. Ele não é um vilão, em si; é pior. É o homem que age em nome do progresso, da razão, do bem-estar coletivo — mas cujos critérios são arbitrários, as ferramentas, cruéis, e a escuta, inexistente. Ele não se impõe pela força física, mas pelo prestígio, pela linguagem, pela confiança no medo alheio de contrariar quem parece saber mais e quem está por cima. É a força bruta da erudição mal digerida.
O delírio coletivo da normalidade
Outro aspecto fascinante de O Alienista é como ele desmonta a ideia de “normalidade” como algo fixo e seguro. Se a loucura é definida pelo olhar do outro — e, nesse caso, pelo olhar do médico —, então qualquer um pode ser considerado insano. O critério é arbitrário, móvel, oportunista. A própria ideia de sanidade é submetida à lógica do poder. Hoje, Bacamarte interna quem fala sozinho. Amanhã, interna quem fala demais. Depois, quem é tímido. Depois, quem é alegre. E depois, quem é… normal demais.

A cidade inteira de Itaguaí passa, em dado momento, a temer ser considerada normal. As pessoas escondem suas particularidades em determinado momento, e no seguinte fingem excentricidades para escaparem da Casa Verde. A loucura vira máscara de sobrevivência. E a normalidade, um risco. Esse universo invertido, onde o medo do julgamento leva à autoparódia, é um retrato agudo das sociedades onde o poder é concentrado demais e os critérios para punição são voláteis. Quando se vive sob o império do arbítrio, a única defesa possível é a simulação. Machado, aqui, antecipa muito do que o século XX veria em regimes totalitários — onde o comportamento ideal era constantemente redefinido, e a paranoia era a única forma de preservar-se. Itaguaí não é diferente de qualquer cidade onde há um Bacamarte com autoridade suficiente para definir quem é são, quem é louco, quem é inimigo, quem é suspeito. E, como toda boa alegoria, continua atual até demais.
A sátira como denúncia
A genialidade de Machado de Assis está em fazer tudo isso com leveza. O texto de O Alienista é cômico, às vezes escrachado, frequentemente irônico, e vez por outra faz seu leitor rir alto. A figura de Simão Bacamarte, suas ações e seus raciocínios é, objetivamente, ridícula. Mas essa comicidade não suaviza a crítica; ao contrário, a acentua. Afinal, muitos dos Bacamartes do mundo – talvez a maioria deles – também o são. Não se apresentam eles como figuras sérias, sisudas, dignificadas, que buscam fazer por merecer o respeito que recebem e a autoridade que empunham, mas muitas vezes, quer propositalmente ou não, se colocam quase como bobos da corte; construções escrachadas, untuosas, patéticas; simplificadas e “idiotizadas” até o último limite para atingir o maior apelo nos casos onde o ridículo é intencional, ou simplesmente tristes e intelectualmente limitadas nas ocasiões em que é natural. Machado tira do tirano a sua elegância e o despe até que o vejamos como ele muitas vezes é: tão absurdo em sua comicidade que chega a ser difícil entender que possa ser levado à sério; chega a ser vergonhoso pensar que o tenha sido. A sátira tem o poder de tornar o absurdo mais visível, mais palpável — e mais inquietante.
As risadas que Machado provoca são incômodas. Rimos porque é absurdo, e porque reconhecemos ali algo de profundamente humano. Não é difícil identificar Bacamarte em figuras da história recente: líderes carismáticos com discursos pseudocientíficos, gestores obcecados por metas que ignoram os humanos que as cumprem, tecnocratas que confundem número com verdade, administradores que, com ares de eficiência, constroem casas verdes simbólicas por todo lado. Criaturas tão perdidas em sua própria narrativa que não conseguem perceber o absurdo de seu raciocínio. A sátira de Machado não envelhece porque o objeto de sua crítica não desaparece. Pelo contrário: parece multiplicar-se, e talvez mais do que nunca nesses novos anos 20, que em tanto se parecem, desesperadoramente, com os anteriores. E reside nessa tragédia histórica o mais atual dos méritos de O Alienista: denunciar, com humor e brutalidade, os mecanismos sutis da opressão racional, da autoridade incompetente, do símio que recebeu uma arma, e acredita ser um caçador. E o ridículo daqueles que deram a ele o bacamarte, sem enxergar o alvo que pintaram nas próprias costas.
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