Efeito Fallout representou alguns pontos de virada na franquia Missão: Impossível. O primeiro: foi a primeira vez que um diretor conduziu dois episódios seguidos da franquia, e desde então, Christopher McQuarrie tem sido, ao lado de Tom Cruise, claro, um dos arquitetos da franquia e, de certa forma, da imagem de Cruise como um todo, uma vez que ele marcou presença também em Top Gun: Maverick.
Mas a mudança mais importante é a transformação de Ethan Hunt em uma figura quase mítica, uma verdadeira “força da natureza”, como descreve um personagem em Ajuste de Contas, que faz das tripas coração para salvar o mundo sem que aqueles próximos à Hunt sejam sacrificados. A impossibilidade da missão não é exatamente cumpri-la, mas realizá-la do jeito que só ele sabe, sem sacrificar sua humanidade no meio do caminho. O trajeto envolve grandes apostas, frequentemente o vilões dos filmes ficam a um passo de conquistar seu objetivo, e as vidas de milhões correm risco para que poucos não se sacrifiquem em nome do sucesso da missão. Para Hunt, a única morte aceitável é a própria, com o próprio se definindo como “dispensável” em O Acerto Final.

Mas no oitavo, e talvez conclusivo, capítulo da franquia, sua reputação se torna uma prisão. Se em Ajuste de Contas a trama parecia mais do que satisfeita em se apoiar na mística de Cruise como o “Salvador do cinema” diante de uma inteligência artificial implacável, aqui sua fama se torna um peso. Apesar de ser normal o personagem ficar aprisionado de alguma forma ou outra ao longo dos filmes, nunca Ethan Hunt ficou tão enclausurado como aqui.
A primeira metade de O Acerto Final é lotada de espaços fechados, salas de tortura ou salas de reunião, sempre sombrias, enquanto Hunt está quase sempre algemado, seja por escolha própria ou não. Ele até dá a sua famosa corrida em direção ao resgate, mas o destino só revela que, desta vez, ele não poderá salvar a todos, seu impulso de messias sendo utilizado contra ele mesmo. Seu sucesso é tão grande que até mesmo a Entidade, a IA maligna, precisa utilizá-lo para atingir seu objetivo final, e quanto Hunt mais precisa de que confiem nele, de humanidade tão necessária para ir contra a lógica fria de seu adversário, sua mão aberta só encontra o ar. Quem poderia confiar no maior agente secreto de todos os tempos?
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A desconfiança com as imagens que cultivamos se estende para a trama como um todo. A Entidade está prestes a controlar todos os arsenais nucleares do mundo, e o temor que percorre as nações, além do próprio adversário cibernético lançar todos os mísseis, é que alguma outra nação o faça de modo preventivo, uma possibilidade levada à presidente Sloane (Angela Bassett): lançar as bombas antes que alguém, nação ou algoritmo, o faça.

Para deixar ainda mais evidente a fragilidade de Hunt neste cenário, o roteiro o separa de um de seus elementos mais vitais: sua equipe. Boa parte de O Acerto Final acontece com seu protagonista sozinho, lidando com novos rostos, longe de figuras familiares como Benji (Simon Pegg), Luther (Ving Rhames) e a Grace (Hayley Atwell), e sem poderem se comunicar de maneira devida para coordenar seu plano, contando somente com a fé que eles possuem um no outro.
Não falo de fé gratuitamente. À sua maneira, o oitavo Missão: Impossível tem seus toques de religiosidade. A Entidade é referida como “o antideus” por diversas vezes e Hunt, para se libertar e reconquistar seu lugar ao sol, passa por uma via crucis, onde seu aprisionamento e solidão é levado ao máximo, em uma sequência dentro de um submarino abandonado que mais parece saída de um filme de terror.
Em uma franquia recheada de momentos de quase morte, é curiosa a escolha de fazer Hunt emergir desta sequência em particular em posição fetal, deixando bem clara a ideia de renascimento, que marca a transição narrativa da obra como um todo. O personagem volta a ficar com o seu grupo, o mundo se abre novamente, as sombras se dissipam e ele volta ao seu elemento: apostando na própria vida para salvar a todos, até mesmo daqueles que não acreditam nele.

O Acerto Final pesa a mão no messianismo nos momentos finais, com até mesmo um personagem do primeiro filme retornando só para declarar que, mesmo as ações de Hunt o prejudicando naquela trama, o resultado final o fez encontrar sentido na vida. Ele escreve certo por linhas tortas, e somente ele é capaz de decidir o destino do mundo.
Há um clima de despedida que cerca este novo Missão: Impossível, mas sua conclusão vai para outro caminho. O mundo precisa de Hunt/Cruise, o homem que desafia a morte a cada filme/missão para salvar/entreter dezenas de milhões. Não podemos ficar sem ele, podemos? A diversão acaba deixando um gosto estranho na boca, parando para pensar, afinal, há um tipo de pessoa que não teme bradar aos quatro ventos ser capaz de salvar o mundo: líderes de culto. Não creio que Cruise tenha tamanha ambição, mas a cada novo projeto, fica evidente seu esforço em amarrar seu sucesso aos rumos do cinema em si, o que já é motivo de desconfiança. O cinema é grande demais para uma pessoa só, mesmo quando a pessoa se pendura para fora de aviões em nome da arte.
Revisado por Letícia Magalhães