“O último número”, poema escrito por Augusto dos Anjos, é a gramática usada pela Cia Carne Agonizante para contar, por meio da dança, a história de dois amantes em “Não te abandono mais, morro contigo”. Em cartaz no Espaço Kasulo, em São Paulo, o espetáculo se forma a partir de uma bandeja, garrafa e dois cálices sobre um colchão. Cada um senta-se na ponta da cama, tiram parte da roupa e tomam a bebida.
Tanto o balé quanto a direção de Sandro Borelli trabalham o mistério da trama como a chave para adentrar o infinito particular desses dois indivíduos. Não sabemos seus nomes, nem de onde são e tampouco a localidade da história. A cenografia cerca essa cama de escuridão, e a rudeza do próprio Espaço Kasulo, colabora para a atmosfera daquilo que está escondido, não do que de fato estamos vendo.

A beleza da direção de Borelli também está na diversificação do elenco: em um dia se apresentam Paco Vasconcelos, e Rafael Carrio; noutro, Patrícia Pina e Renata Aspesi. E isso faz toda diferença para se entender quantas sensações podem ser embrulhadas na pele nua de cada um. Para além da sensualidade, do calor do sexo encenado e a imaginação desejosa instigada, toda a carga e tensão que tomam os corpos no decorrer da peça vem daquilo que o público colhe dos movimentos hiper calculados dos artistas. De algum modo, à espera de vê-los consumando algo nunca plenamente alcançado, e a suposta distância entre as carnes e as almas, desencadeiam memórias afetivas sem que se perceba a dor de imediato.
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“Queer”, por exemplo, o filme de Luca Guadagnino estrelado por Daniel Craig, começa com uma cena parecida: dois amantes incorporando um desejo clandestino em um quarto apático, esperando que a brevidade seja só um engano. Quando se trata de amores proibidos por imposições sociais, o sofrimento torna-se universal, existindo no desencanto do próprio ato a única matéria capaz de revelá-lo. No poema de Augusto dos Anjos, um dos versos mais bonitos diz o seguinte:
“Era de vê-lo, imóvel, resignado, Tragicamente de si mesmo oriundo, Fora da sucessão, estranho ao mundo.”
Para materializar a poesia sobre a passagem de tempo, Borelli usa a cama como relógio. Os atores, quase sempre deitados, movimentam-se no sentido horário, e, passado o momento inicial do espetáculo – em que há uma troca de olhares intensa – não voltam a se ver frontalmente, como se eles precisassem se desviar da verdade do encontro. A plateia é incorporada à cena como espiã. Sim, estamos dentro desse quarto e o nosso julgamento transforma o título do espetáculo, que pode ser uma sentença ou clemência. Quem poderá definir os atos desses amantes?
Na minha sessão, o barulho imprevisto da chuva na telha de aço do Espaço Kasulo, mesclado à dramaturgia sonora de Gustavo Domingues, avolumou a tensão entre Paco Vasconcelos e Rafael Carrio e deu mais desolação à cena. Talvez, fosse um batismo inverso, uma celebração da morte como ato de vida. Ou de desobediência, que seja.
Mas ainda que “Não te abandono mais, morro contigo” seja um espetáculo de catarse silenciosa e previsível, jamais pacifica o momento entre os amantes. A tarefa é dificílima. Porque a constatação mais evidente do espetáculo (nada restou para eles) se desfaz à medida que o tempo passa e todos se percebem presos à repetição desta sentença: “a minha ontogênica Grandeza Nunca vibrou em tua língua presa, Não te abandono mais! Morro contigo!”
Ficha técnica
Intérpretes: Paco Vasconcelos, Patrícia Pina, Pietro Morgado, Rafael Carrion e Renata Aspesi.
Concepção, direção, coreografia e luz: Sandro Borelli
Assistente de coreografia: Rafael Carrion
Trilha sonora: Gustavo Domingues e Beethoven
Figurino e Cenário: Grupo Design Gráfico: Paco Vasconcelos
De 2 a 25 de maio de 2025
Sextas e sábados, às 20h, Domingos às 19h
Local: Kasulo Espaço de Arte
Endereço: Rua Sousa Lima, 300 – Barra Funda – São Paulo/SP
Ingresso: via Sympla : R$30 e R$15 (compre aqui) | Na porta : R$40 e R$20
Informações: @ciacarneagonizante @_kasulo
Classificação indicativa: 18 anos
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