O Guardião de nomes de Leonardo Garzaro cria um mundo. E é exatamente este feito que torna o livro tão especial.
A história, quer queira quer não, transporta o leitor para esse mundo de nomes, rixas, ódios, renúncias (e arrisco-me a dizer) tradições mofadas e amor. Criar espaços físicos parece ser um recurso e instrumento para que possamos nos localizar não somente no mundo empírico, mas também, por tabela, no mundo das letras.

Vide, para citar apenas dois exemplos, os locais ficcionais mais famosos na literatura mundial: a Macondo de Gabriel García Márquez que surge do sonho de um campesino, erguida na região costeira da Colômbia, e o Yoknapatawpha County, Mississippi, no sul dos EUA, de William Faulkner, que é o pano de fundo para alguns contos e três de seus romances. Aliás, diga-se de passagem, ambos autores aqui mencionados foram galadoardos com o Nobel de Literatura anos atrás.
O título que Leonardo Garzaro deu – agindo como seus próprios protagonistas – ao seu livro, O Guardião de nomes, é certamente um achado literário. No entanto, ele, o título, nos engana logo na bela capa do livro; não é apenas um retratado, mas três guardiães. Funcionam não apenas como depositários de nomes, mas também são eles mesmos que os criam para as populações às que eles servem. Um dos guardiães nem nome possui. Seria essa uma contradição? Certamente que não pois, apesar de ser uma surpresa ao leitor, há um porquê da ausência de um nome exatamente para um dos protagonistas-chave do texto.
Afirma-se que o ato de dar nomes tenha ocorrido mesmo antes do surgimento da escrita. Na Pré-História, os seres humanos já usavam imagens e sons para denominar coisas e seres ao seu redor, ou seja, quando começávamos a “domar e dominar”, e consequentemente transformar assim a Natureza. Em O Guardião de nomes, esses mesmos protagonistas – apesar de estarem bem longe daqueles tempos remotos – parecem atuar momentaneamente como nossos ancestrais, dando nomes àqueles – em sua maioria moradores simples – que lhes batem à porta ou trocando os nomes de alguns lugares. Posteriormente, no decorrer da história, até mesmo os letrados desejam que seus nomes sejam trocados – a fim de conseguirem um melhor status em suas vidas profissionais ao abandonarem, segundo eles, seus nomes que a priori não têm peso social algum – por esses mesmos guardiães.
Herdeiro direto dos que vieram do além-mar, o fazendeiro e barão Álvares Corrêa carrega, com um exarcebado orgulho, o seu nome, sendo ele o primeiro guardião de nomes nos arredores de sua fazenda. Pai de sete filhos homens, é ele mesmo quem dá nome e registra cada um deles. Terminantemente contrário à escolha do nome do sétimo filho pela esposa, Clara, e de volta de uma viagem, depara-se então com uma tragédia debaixo de seu próprio teto. A tragédia, envolvendo a esposa, é a consequência direta da recusa de Álvares Corrêa pelo nome que ela sozinha havia escolhido para o sétimo filho. Apesar do acontecido, Álvares Corrêa continua relutante e se opõe veementemente a batizar a criança com o nome sugerido. Como acontece na história – e nesse Brasil afora, ainda hoje –, a esposa do barão Álvares Corrêa, desta forma, é convertida à santa, com direito a um mausoléu lembrando a um altar perante os olhos da população local.
O sétimo filho do casal é então conhecido como a maior criança jamais nascida naquelas redondezas, fato que o faz famoso, mas a medida que vai passando o tempo, ao invés de alcançar a altura esperada de qualquer gigante, seu corpo se metamorfoseia no corpo de um anão. Enxotado da casa pelo próprio pai, o filho-sem-nome parte então para o seu destino, o qual lhe espera ali mais adiante, e que nada mais é do que ele mesmo vestir a profissão de guardião de nomes. A partir daí, passa a ser chamado pela profissão que escolheu.
Bem visto pelos moradores, recebe – gratuitamente pelos serviços prestados sem cobrar um tostão –, do município, uma casa onde vive e armazena os seus inúmeros livros repletos de nomes os quais escreveu a punho durante anos e anos. Não deixa, na realidade, de espelhar a imagem de um ermitão após ter experimentado tudo que uma vida mundana teve para lhe oferecer: dinheiro ganho e fanfarronamente desperdiçado em bebidas, noitadas, e mulheres.
E eis que surge seu filho, o qual o chama de Pródigo. Este, também passa a exercer a atividade de guardião de nomes assim que o pai falece. Diferentemente do pai, Pródigo pensa que seus préstimos devem ser, sim, remunerados. Pródigo visita a casa do avô (como se retornasse a ela imitando o seu famoso homônimo e personagem do evangelho de Lucas, no Novo Testamento) que lhe conta as histórias, que ouvira de terceiros, sobre seu pai tão rejeitado pelo próprio avô. Passado algum tempo, Pródigo – que no íntimo também anseia mudar o nome – fica sabendo que os tios querem furtivamente resolver a partilha da parca herança deixada por Álvares Corrêa com o intuito de excluí-lo dela embora, por lei, Pródigo teria direito de receber sua parte por ele ser também um descendente imediato e legítimo daquela família.

O Guardião de nomes não se restringe à história de uma família abastada cujo capital – como tantas que conhecemos – vai minguando aos poucos, mas que continua exercendo, quiçá, algum papel exata e exclusivamente pelo nome na sociedade onde atua. No entanto, como também sabemos, muitas dessas famílias pensam assim errônea e ilusoriamente.
Várias frases do texto chamam a atenção e que podem fazer o leitor pousar o livro sobre a mesa ou sofá – ou onde quer que esteja lendo esta história – para assim refletir sobre elas. Mas, uma, em particular, parece saltar aos olhos por resumir tão sucintamente o que foi e, talvez ainda seja, o que chamamos de Brasil: “Somente numa terra atrasada os estelionatários se punham a santos e os matadores, a poetas”. Quantos políticos e matadores atuais que conhecemos não caberiam como uma luva nessa descrição? Façamos então uma lista de nomes e a postemos em alguma rede social?
E pensando o Brasil como um espaço físico e cultural que compartilhamos, sabemos, desde o berço, que uma das perguntas que revela uma fatia da população que a usa indiscriminada e vexatoriamente como se ainda vivesse nos tempos da Casa Grande é: “Você sabe com quem está falando?”.
Essa pergunta extremamente rançosa, mas ainda tão usada no dia-a-dia do brasileiro, é uma das que não se encontram nessas 431 páginas, em nehuma fala de algum de seus personagens, mas que está, sim, nas entrelinhas desse texto. Ela poderá muito bem ecoar na mente do leitor mais atento.
O Guardião de nomes, além de ser o relato cativante de uma família em decadência, é um livro que retrata esse Brasil tão carente de mudanças não apenas de nomes, mas de atitudes tanto dessa fatia da população no ápice da pirâmide social, quanto de nós todos como um povo único, coeso e livre.
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Wilson Loria é professor de idiomas, ator e escritor. Formado em língua e literatura inglesas pela PUC-SP, fez seu mestrado em Estudos da Performance na Universidade de Nova York (NYU).
Em 2024, publicou seu romance Amores Terás Vivido (Ed. Patuá).