Qual seria o resultado de um encontro da música popular brasileira com a literatura brasileira? E mais, e se os personagens de nossas canções se tornassem personagens de um livro e interagissem entre si e interviessem na história e na vida um dos outros? Entre fábula, parábola e fantasia, esta é a proposta do livro Toada da terra de lá, de Gisele Garcia.
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Toada da terra de lá, é um livro infanto-juvenil de Gisele Garcia, publicado pela Editora Labrador com ilustrações de Paulo Alaor. A sinopse do livro é o maior barato: uma menina chamada Beatriz que, ao ser obrigada a ir dormir, vai para o seu quarto quando vê um sabiá de longas asas que a leva para um lugar aparentemente mágico: a terra de lá.
Chegando lá, ela se vê em meio a uma movimentada estação de trem e conhece um homem triste: Pedro. Ao perguntar a um ajudante quem era aquele homem, descobre que se tratava de um pedreiro que havia perdido a esperança na vida. Assim, Beatriz resolve viajar por aquelas terras até encontrar a Esperança. Mas quem sabe dela? Um tal de Poetinha que ela também precisa saber onde está.
O mais legal disso tudo é que quase todas essas figuras são nada mais nada menos que figuras da nossa música popular brasileira. Beatriz é aquela que a gente não sabe se é moça, se é triste ou se é o contrário, conhecida na canção de Chico Buarque e Edu Lobo. Pedro é o “Pedro pedreiro penseiro” que está “esperando o trem”, canção da primeira fase de Chico Buarque. A Esperança é a nossa “Esperança equilibrista” de João Bosco e Aldir Blanc, que sabe que “o show de todo artista tem que continuar”. O Poetinha, claro, é Vinícius de Moraes.
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Apesar de Toada da terra de lá ser uma obra para um público infantil e infanto-juvenil é uma grande aventura também para nós leitores e apaixonados pela nossa música que ficamos à procura das músicas que Gisele vai escondendo em sua narrativa. Desse modo, enquanto a gente acompanha as peripécias de Beatriz, vamos também como detetives escavando canções que estão na história. Algumas, as pistas são mais claras, outras, ficam bem escondidas. Talvez, quem sabe, a gente encontre até alguma que a autora sequer imaginou.
Uma coisa que eu não posso deixar de mencionar é como esse livro foi capaz de me fazer rir. E rir alto, largado. O motivo? Um trocadilho genial que Gisele Garcia criou ao nomear a terra de “Terra de lá”, o que significa que quando Beatriz está na “terra de lá” está “cá” e quando está em casa, ou seja, “lá”, ela está na “terra de “cá”. Complicado? Cito:
Vocês usam os “lás e cás” trocados, e nós que somos estranhos? (…) Coisa mais sem lógica. O lugar onde estamos se chama Terra de Lá, mas é aqui. E o meu mundo se chama Terra de Cá, apesar de estar lá, em algum canto que eu não sei explicar.
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Isso parece um detalhe pequeno, mas é importantíssimo para qualquer literatura, saber imaginar e jogar com as palavras, fazê-las dizerem o que não dizem, chacoalhar os sentidos tradicionais. E Gisele faz isso bastante, tanto ao utilizar as músicas, quanto em alguns neologismos como quando Beatriz encontra Pedro pedreiro penseiro pensando esperando o trem e resolve, ao lado dele, também “esperapensar”:
Vou “esperapensar” com você até o seu trem chegar, o silêncio, a pensar e a esperar. “Esperapensam” até serem despertados pelo apito do trem que vem chegando: um apito aflito como os pensamentos de Pedro, infinito como a espera dele.
Não poderia deixar de destacar também as belíssimas ilustrações de Paulo Alaor que, apesar de simples, não são redundantes com o que está sendo narrado, mas ilustra espaços e movimentos com singeleza e graça, com o divertido destaque de que o Pedro parece estar com a camisa do Botafogo, time que durante anos ficou “esperando, esperando, esperando…”. Muito bom.
Dentre as inúmeras citações, encontrei a canção “Azul” de Djavan, que vê o sol nascer “amarelinho e queima de mansinho”; a canção Sonho Meu, de Dona Ivone Lara em parceria com Délcio Carvalho, sucesso na voz de Maria Bethânia; Timoneiro, de Paulinho da Viola, para quem “o mar não tem cabelos para a gente agarrar. Não somos nós que o navegamos, é ele quem nos navega”. Ponteio, de Edu Lobo, no trecho “quem me dera agora eu tivesse a viola para cantar”; Irene, de Caetano Veloso, e Zé do Caroço, de nossa querida Leci Brandão.
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Para finalizar, destaco um dos momentos mais especiais do livro: o encontro de Beatriz com o Poetinha, em que ele faz uma verdadeira declaração de amor à vida:
Se você reparar bem, pequena Beatriz, perceberá que todas as coisas têm um fundamento a lhe justificar o existir: o lugar é que torna o oceano belo, a chuva é que faz a nuvem acontecer, o cantar é que dá razão à canção. Assim é com a vida. É o amor que justifica o viver. Se não for para amar, para que viver?
Toada da Terra de Lá, de Gisele Garcia, é um livro que encanta e se prolonga bastante dentro da gente, que faz a gente querer fechá-lo e ligar a caixa para ouvir suas músicas. Gisele, inclusive, fez uma playlist com todas as músicas citadas e oferece um QR code de acesso para a gente poder acompanhar as canções enquanto lê.
Em um mundo cada vez com menos imaginação, que alegria descobrir uma obra que não só imagina um outro mundo, mas faz isso com as coisas desse. As músicas, arraigadas na nossa história, viram histórias que automaticamente nos levam a memórias felizes, da infância à vida adulta. Toada da Terra de Lá, um livro para a gente ler sempre, pras crianças, pra gente, e cá.