Rosa Caldeira, cineasta trans e favelado, tem filme selecionado para Festival de Berlim

Rosa Caldeira, cineasta e roteirista paulista, tem motivos de sobra para comemorar. Seu curta-metragem Anba dlo, uma co-produção entre Brasil, Cuba e Haiti, foi selecionado para a Berlinale Shorts, a competição oficial de curtas do Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), um dos mais prestigiados do mundo. Além disso, Rosa também participará da Berlinale Talents, uma plataforma de networking e desenvolvimento para talentos emergentes da indústria cinematográfica.

Nascido e criado na periferia de São Paulo, Rosa começou sua jornada no audiovisual de forma pouco convencional. “Essa história é longa e cheia de causos, como qualquer narrativa favelada, meio sem pé nem cabeça”, brinca. Inicialmente, formou-se em um curso técnico de elétrica, buscando um trabalho “mão na massa”. “Cresci vendo minha mãe construir nossa casa e queria aprender algo que ajudasse nisso”, relembra. Na época, era uma das poucas mulheres cis em uma área dominada pelo machismo.

Foi através da elétrica que Rosa entrou no cinema. “Muitas diretoras cisgênero estavam buscando equipes mais diversas, e minha formação me colocou nesse movimento”, conta. Assim, fez parte de uma das primeiras gerações de mulheres cis e pessoas trans trabalhando com elétrica no cinema brasileiro. Paralelamente, Rosa sempre teve uma conexão profunda com a contação de histórias, herança de seu avô, ganhou o primeiro campeonato de mentiras do interior de Minas Gerais. “Acho que segui esse chamado”, reflete. Influenciado pelo rap e pela arte de rua, Rosa viu no audiovisual uma ferramenta potente de narrativa.

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Enquanto trabalhava como eletricista em produções pelo Brasil, Rosa também construía um coletivo de cinema em sua comunidade, onde criava filmes e promovia cineclubes com produções independentes. “Eram histórias que falavam de nós e da nossa realidade, sempre invisibilizada”, diz. Com o reconhecimento de seu trabalho autoral, Rosa fez a transição para a direção e o roteiro, retomando suas raízes na contação de histórias.

Still do curta Anba dlo

Anba dlo e o reconhecimento internacional

Anba dlo, dirigido em conjunto com Luiza Calagian, é um curta que aborda temas como perda, migração e espiritualidade. O filme conta a história de Nadia (Berline Charles), uma bióloga haitiana que pesquisa a flora e a fauna de Cuba. A narrativa foi influenciada pela experiência pessoal de Rosa, que perdeu o pai durante a produção. “O filme fala sobre o luto e a maneira como lidamos com a perda, algo profundamente humano”, explica Rosa. “Mas também carrega uma camada política importante, porque para nós a morte é política. Quem tem o direito ao luto?”.

A seleção para a Berlinale é um marco na carreira de Rosa, que já havia conquistado reconhecimento com seu filme anterior, “Perifericu”, premiado em mais de 35 festivais e exibido em cerca de 200 eventos. “Recebi a notícia e custei a acreditar. É um dos festivais mais importantes do mundo, com mais de 5 mil inscritos só na nossa categoria, e apenas 20 selecionados”, comemora.

Para Rosa, esse reconhecimento é ainda mais significativo por sua origem. “O universo das artes é elitista e excludente. Essa seleção já é um prêmio enorme, especialmente para mim, um cineasta trans e favelado”, afirma. “Mesmo com prêmios e conquistas que muitas pessoas com mais sobrenome, dinheiro e acessos não conseguiram alcançar, ainda sinto que tenho que me provar o tempo todo”.

O futuro das artes no Brasil

Rosa acredita que o futuro das artes no Brasil está nas mãos de artistas dissidentes das favelas e quebradas. “O cinema favelado é o presente e o futuro”, diz. “Falar de arte é debater o Brasil — e já passou da hora de enxergar esse país pela perspectiva das favelas”. Ele comemora o momento atual do cinema brasileiro, impulsionado por vitórias como as de Fernanda Torres e “Ainda Estou Aqui” em festivais internacionais, mas ressalta a necessidade de mais investimentos e políticas públicas.

“Estamos no momento ideal para que mais cineastas recebam o reconhecimento que merecem, mas isso exige oportunidades”, afirma. “A seleção em Berlim é importante, mas não precisamos esperar validação internacional para valorizar nossos artistas. Temos talentos incríveis espalhados pelo Brasil, mas ainda faltam investimentos, produtoras e políticas públicas que nos apoiem. Queremos arte feita pelo e para o povo também. O futuro das artes no Brasil é agora!”.

Com “Anba dlo” na Berlinale e novos projetos em andamento, como o curta “Saudades, Maloqueira” e o longa “Felicidade”, Rosa Caldeira segue firme em sua missão de levar as narrativas periféricas e transmasculinas para o mundo, provando que o cinema favelado é, de fato, o presente e o futuro das artes no Brasil.

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