Resenha do livro “Confissões, Visões e o Desterro”, de Luciano Prado imagina Porto Alegre destruída em distopia nacional
O fim do mundo é tema recorrente na literatura, na TV e no cinema. De guerras e pestes a meteoros e zumbis. De Albert Camus com “A peste” a Robert Kirkman com “The Walking Dead”. Pensar sobre o nosso fim seria algo inerente à condição humana ou uma resposta ao que nos cerca?
A Gripe Espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas em dois anos – de 1918 a 1920, acabou não tendo muito espaço na ficção do período. Gripes, no geral, não são um tema central na literatura, já reclamava Virginia Woolf no ensaio “Sobre estar doente”, de 1926. Contudo, o mesmo parece não ter acontecido com a Covid-19, pelo menos não com as suas consequências. Muito se produziu e ainda se produz sobre o tema ao passo que pessoas ainda morrem em razão da doença, além de outras calamidades que se sucederam, como as enchentes que assolaram Porto Alegre e outras regiões do Sul do país em 2024.
Os ecos dessas tragédias constroem a base da ficção distópica de Luciano Prado, “Confissões, Visões e o Desterro”, publicada pela Editora Metamorfose em 2024.
No romance, o Brasil e o mundo não se recuperaram da pandemia do novo coronavírus enquanto as águas do Guaíba deixaram um interminável rastro de lama espessa e fétida e o mundo seguiu o mesmo caminho. Em 2027, ano no qual se passa nosso relato, a barbárie já era o novo normal.
Largados à própria sorte, parte dos sobreviventes dividiram-se em comunidades em busca de um pouco de ordem em meio ao caos. Frederico, nosso protagonista, fazia parte do Conselho de Magalhães, ou em suas próprias palavras, “a tertúlia do meu bairro”, que compreendia os antigos bairros de São João, Higienópolis e Auxiliadora, em Porto Alegre.
Essa nova organização social era baseada nas habilidades individuais de cada indivíduo e, assim como o autor, Frederico era médico, um Gama, ou seja, pertencia “ao rol de moradores com empregos anteriores à crise do vírus ainda muito necessários e complexos, entre os quais estavam profissionais da saúde, professores, arquitetos e engenheiros”.
Acesso e poder dependiam dessa classificação social, o que dentro e fora da narrativa levanta discussões do que é essencial em um cenário tão inóspito. Em uma das cenas, uma pintora famosa defende sua classificação como Gama diante da importância vital da arte para a psique humana, o que gera um debate acalorado e que nós, leitores, podemos perfeitamente estender para a nossa realidade já que vimos o quanto a pandemia da Covid-19 impactou economicamente os artistas. Impossibilitados de trabalhar, sem políticas públicas voltadas para o setor e com o clássico desprezo por parte da sociedade, foi um dos grupos que sentiu bastante o abalo do período.
Luciano traz a temática, mas não se debruça muito sobre o assunto, pois Frederico tem uma missão e, para cumpri-la, precisa percorrer uma Porto Alegre desolada, mas ainda reconhecível aos seus.
Pare e pense por um momento na sua cidade, no seu bairro. Por mais que as construções estivessem abandonadas e a vegetação sem controle, você provavelmente ainda conseguiria chegar ao antigo mercadinho. Porto Alegre era a cidade dele. Aquela era sua vizinhança. Um prédio em ruínas não é só um prédio, mas uma lembrança.
E não precisamos de um apocalipse viral para imaginar esse cenário, visto que há pessoas no mundo que neste momento perderam seus lugares de referência. A escola, a casa da avó, uma oliveira.
Frederico enfrenta uma espécie de desterro dentro do próprio bairro, da própria cidade. Andar por aquelas ruas era ser assombrado não só pelo espectro da cidade e seus mortos, mas também pelas lembranças de outros tempos e todos os “e se” que a mente tende a alucinar.
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Porém, ele não vai só nessa caminhada fora de seu Conselho e em direção a uma Zona Neutra, que na verdade era uma “terra de Malboro”, “pedaços desabitados da cidade, abandonados pelos moradores e, por isso, locais selvagens do ponto de vista da fiscalização e cumprimento de regras”. Além de nos levar com ele pelas ruas dessa Porto Alegre pós-apocalíptica, uma companhia não esperada surge para acompanhá-lo na expedição, Ricardo, um homem que vai fazer Frederico questionar os protocolos de sobrevivência que criou para si.
Ao longo do caminho eles se deparam com todo tipo de violência. Sim, temos cabeças rolando, mas também todo tipo de situação inusitada que nos faz olhar para o ridículo que vivemos nos tempos da Covid-19, como lavar um pacote de batata palha ou ver uma cueca no lugar de uma máscara no rosto de alguém na fila do supermercado enquanto a morte estava à espreita.
Na Zona Neutra, tudo era possível. A realidade se transformava em uma disputa entre grupos de homens que se autodeterminavam a nova humanidade em um mundo no qual “ o que vale é a paudurescência.”, como afirma um dos personagens. De Incels Neandertais em fraldas geriátricas a uma mistura de Hitler e Charles Manson representam o clássico nessas histórias de fim de mundo no qual homens buscam subjugar, estuprar e escravizar mulheres. Mas Luciano vai pelo caminho certo ao não explorar essa violência diretamente.
O livro é sobre essa jornada de Sam e Frodo, Dom Quixote e Sancho Pança, e toda a ação e reviravoltas que dão muita dinamicidade à narrativa, mas é também uma história sobre luz e sombra em um mundo virado de ponta cabeça e que a todo o momento coloca à prova a moral dos personagens e o conceito de humanidade construído antes do “século das trevas virulentas”.
“— Clá, me preocupa a linha que acabei de cruzar.
— Amor, ninguém vai sair inteiro dessa confusão toda.”
Na história do planeta Terra que o autor de ficção científica chinês Cixin Liu desenvolve no que ficou conhecida como a Trilogia do Problema dos Três Corpos há uma interessante reflexão quando os seres humanos saem para o espaço. A transformação seria tamanha que eles deixariam de fazer parte da raça humana. O meio e as novas adversidades desse meio tirariam a humanidade daquelas pessoas e o conceito de humanidade desapareceria com o tempo no espaço.
Aqui na história distópica de Luciano Prado o futuro não contempla naves e viagens espaciais, mas podemos levantar questões semelhantes. Nesse novo mundo, nesse novo meio, o que é ser humano? O que é certo e errado? O que nos aproximaria e o que nos afastaria da concepção que temos de humanidade em uma situação limite? Resistiríamos ou abraçaríamos o caos?
São reflexões que trazem uma camada de profundidade a uma narrativa que por incrível que parece é leve. Há inúmeras referências ao cinema e à cultura pop que divertem e aproximam o leitor com humor e sarcasmo.
“— Você gosta de filmes, não é? Pois isso aqui é o Templo da Perdição e você é o maldito do Indiana Jones! Então, entra lá, pega as três pedras sagradas e sai correndo. Sem discussões. Fui claro?
— Cri-cristalino, doctor Henry Jones II.”
Tem espaço para a galhofa e para a ironia, o que considero essencial para o objetivo do autor que é entreter e em um roteiro que eu diria que tem a carinha de um filme pós-apocalíptico da Netflix.
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Sobre o autor:
Luciano Prado é médico nascido em Porto Alegre.
Rodeado de livros desde a infância, fato essencial em sua vida, tomou a decisão de levar aos leitores o tipo de história que sempre o fascinou. Inspirado nos mais diversos autores identificados com a chamada literatura de entretenimento, espera trazer às páginas enredos emocionantes que permitam a novos leitores o prazer de uma leitura que alie ritmo com reflexão.
Luciano vive na capital gaúcha com a mulher e seus dois filhos. Este é seu livro de estreia.