A seca castiga, mas a imaginação é um rio perene. No coração do sertão, onde a poeira se mistura à esperança, o universo mágico e crítico de Ariano Suassuna floresce eternamente. Suas palavras, carregadas de uma sabedoria popular que atravessa gerações, ecoam com a força do povo nordestino, que, em meio às dificuldades, nunca perde a capacidade de sonhar, rir e resistir. Em “O Auto da Compadecida”, Ariano Suassuna não apenas conta uma história; ele constrói um mundo onde a fé e a crítica se entrelaçam em uma dança irreverente. O que nos reserva o retorno desse universo em 2024? O que ainda podemos aprender com os risos de João Grilo e as lições de Chicó, que atravessam o tempo e continuam a falar ao nosso coração? O sertão, imortal em sua essência, nunca deixa de ensinar.
Ariano Suassuna: O defensor incansável da cultura nordestina
Nascido em João Pessoa, Ariano Vilar Suassuna cresceu no calor da cultura nordestina e na aridez do sertão, onde aprendeu a transformar cada desafio em arte. A vida não foi fácil, e nem ele, com sua esperteza, escapou das duras lições. Ainda criança, sofreu o golpe amargo da perda de seu pai, assassinado por questões políticas. Porém, em vez de se amargurar, Ariano encontrou em Taperoá, sua terra de refúgio, o combustível para a sua arte: as histórias contadas à beira do fogo, o som da viola e a tradição dos mamulengos. Foi lá que ele entendeu que a cultura nordestina, longe dos estereótipos, era rica e cheia de complexidade.
Suassuna sempre defendeu que o Nordeste não precisava se curvar diante das modas externas. O Movimento Armorial, por exemplo, foi criado para unir a erudição com a cultura popular, provando que o que vem de nossa terra tem força suficiente para se afirmar sem precisar copiar ninguém. “O Nordeste é como é, e não precisa se disfarçar”, dizia ele, com o humor refinado como faca de vaqueiro.
Sua obra mais famosa, O Auto da Compadecida, é uma mistura perfeita de humor e crítica social. Em suas linhas, a esperteza dos personagens João Grilo e Chicó vai além da simples malandragem, trazendo à tona as injustiças de um sertão onde o poder e a fé estão sempre à venda. O riso é fácil, mas o recado vem direto: em uma sociedade onde quem manda tem tudo e quem obedece nada tem, só a astúcia e a fé podem salvar.
“O Auto da Compadecida” – Entre Risos e Reflexões
Ah, ó Auto da Compadecida! É como um prato de carne de sol com arroz, feijão e macaxeira: tem de tudo e deixa a gente com gosto de quero mais. João Grilo, o cabra arretado que nunca perde uma oportunidade, é o protagonista dessa comédia onde tudo vira piada, mas a crítica social não deixa de ser dura como pedra. Ele não tem medo de nada, nem do diabo, pois a vida já lhe tirou tudo o que tinha. Ao lado dele, Chicó, medroso até dizer chega, mas com coragem suficiente para enfrentar os maiores perigos, desde o inferno até o bolso do bispo. Como ele mesmo diz: “Medo é o nome do cabra que não tem coragem.”
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Não se engane, porém, com as risadas. Entre as tramoias e os truques de João Grilo, Suassuna enche a gente de indignação ao mostrar as misérias de um sistema social cruel. Os padres, bispos e coronéis não estão nem aí para a salvação das almas, mas se preocupam com o recheio dos bolsos, e quem paga o pato? O povo. E é justamente o povo, com sua fé e astúcia, que é capaz de dar a volta por cima, mesmo quando tudo parece perdido. A Compadecida, Nossa Senhora, surge como a grande salvadora, lembrando-nos que, se os homens falham, a compaixão de uma mãe nunca falha.
O humor de Suassuna é ácido como limão galego, mas tem a doçura da rapadura. Ele sabia que, para falar da seca, da miséria e da injustiça, só com risos e ironia. Porque, no fundo, o desejo de sobrevivência do povo nordestino é mais forte do que qualquer sofrimento.
A Cultura Nordestina em “O Auto da Compadecida”
O Auto da Compadecida é uma verdadeira tapeçaria da cultura nordestina. Em sua obra, Suassuna entrelaça o cangaço, a religiosidade, o folclore e a literatura de cordel, mostrando um Nordeste de luta e resiliência. O cangaço, representado por Severino, é uma denúncia da desigualdade social. Para quem não tem justiça, a bala é a última opção.
A religiosidade também aparece como um tema central, revelando as contradições da fé popular. O padre e bispo corruptos, contrastando com a verdadeira compaixão representada por Nossa Senhora, fazem de O Auto da Compadecida uma crítica ao clero, que se esquece do seu papel divino.
A presença do folclore nordestino é inconfundível. João Grilo e Chicó, com suas figuras arquetípicas, fala à nossa memória coletiva, como se foram contados por um velhinho à beira da fogueira. Eles personificam o esperto e o medroso, características que povoam tantas lendas nordestinas.
Além disso, Suassuna homenageia a literatura de cordel, com seu ritmo cadenciado e sua linguagem simples, mas poderosa. A forma como ele usa as rimas e os diálogos rápidos reflete a vivacidade dessa tradição oral, que resiste ao tempo, seja em forma de verso ou em histórias de gente comum, cheia de sabedoria.
Esses elementos culturais não estão ali por acaso. Eles fortalecem a identidade nordestina, trazendo à tona o sabor do sertão e suas múltiplas facetas. Suassuna não só retratou o Nordeste, mas o eternizou com cores vibrantes, com suas dores e alegrias, sempre com um riso no rosto e um olho atento às injustiças.
Influências Artísticas sobre Ariano Suassuna
Ariano Suassuna ficou profundamente inspirado por diversas expressões artísticas que formam a base da cultura nordestina. A música popular, a poesia de repentistas e os cantadores de viola foram fontes inesgotáveis para ele. Como Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, Suassuna incorporou em suas obras a estética da música sertaneja, com suas histórias cheias de humor e sofrimento, que ecoam na voz do povo.
A xilogravura, com suas imagens simples e impactantes, também fez parte do universo artístico de Suassuna. A arte popular, em sua forma mais sincera, revelou-se em seus personagens e cenários, e na crítica social presente em seus textos.
O trabalho dos mamulengueiros e mestres de bonecos também atraiu Suassuna, que soube combinar humor e crítica de forma única, tal como esses mestres que sabem dar vida a fantoches para expressar a vida do sertão.
A Continuação de 2024: “O Auto da Compadecida 2”
A expectativa para O Auto da Compadecida 2, com lançamento previsto para 25 de dezembro de 2024, é enorme. Selton Mello e Matheus Nachtergaele, os eternos João Grilo e Chicó, prometem encantar novamente o público com suas peripécias. Mas será que a mágica do original se manterá? Em tempos de incertezas políticas e sociais, Suassuna, com sua crítica ácida e seu humor refinado, continua a ser mais necessário do que nunca. A obra, que já ironizou a realidade de um Brasil marcado pela desigualdade, promete ainda mais reflexões e risadas para a geração de hoje.
O Sertão que Nunca Morre
A imortalidade da obra de Ariano Suassuna reside não apenas nos personagens que ele criou, mas nas ideias que esses personagens representam: a resistência, a coragem e o poder de reinvenção do povo nordestino. Através de figuras como João Grilo e Chicó, Suassuna eternizou a sabedoria popular, o humor afiado e a luta pela sobrevivência. O Nordeste, com sua cultura rica e multifacetada, nunca deixará de ser um berço de histórias que, assim como os personagens de Suassuna, seguem pulsando, sempre renovadas e vivas. A força do sertão, com suas contradições e beleza, permanece não apenas nas palavras, mas nas ações e nas risadas daqueles que sabem, como João Grilo, que a vida é feita de desafios e vitórias diárias. Mesmo com a partida de Suassuna, a essência de sua obra é imortal, pois suas histórias pertencem ao Brasil e ao mundo, e continuam a encantar, ensinar e provocar reflexão. Que os ventos do sertão sigam soprando forte, trazendo consigo o eco das vozes que nunca se apagam.