Meu irmão, você parece ser um eterno talvez.
Como faço para torná-lo a certeza mais irredutível da minha vida?
Claudinei Sevegnani, Cisne de Vidro
Do que é feita a ausência? Se ela é falta, por que ela se faz tão presente na gente? A materialidade de uma ausência já foi abordada por diversas obras no decorrer da nossa história. De Drummond, com o poema “A um ausente”, passando multiplicação de Fernando Pessoa em heterônomos na busca de, sendo muitos, não ser ninguém, chegando até ao palestino Marmud Darwich em seu livro “Da presença da ausência”, sobre a situação daqueles cujo direitos à terra são negados.
Entretanto, em todas essas obras citadas anteriormente, a presença de alguém que já não mais está lá é objeto dos escritos, ou seja, são temas, conteúdos, são assuntos tratados. Até porque este assunto requer uma abordagem do impossível: escrever o que não há. Pois é isso que buscou fazer Claudinei Sevegnani em sua obra Cisne de Vidro, publicada pela Editora Urutau.
Neste livro, um breve romance, talvez uma grande novela, publicado em 2024, entramos em contato com um personagem que está em busca de seu irmão cuja ausência marca a sua identidade. A força dessa ausência, no entanto, está no fato de que esse personagem não lembra sequer o nome de seu irmão:
“Nada poderia ser tão aterrorizante quanto não saber mais soletrar ou escrever a palavra que sempre te nomeou.
Eu me esqueci do seu nome. E essa foi a coisa mais angustiante que experimentei nos últimos anos.”
O peso dessa falta do nome que desaparece se alia ao fato de que esse personagem não tem nenhum registro de seu irmão, seja em foto ou em vídeo e, mesmo nas memórias, a sua presença se faz fugidia e escorregadia, surgindo por flashs que se desfazem antes mesmo que se tornem matéria viva: “Faz tanto tempo que não sei lembrar do seu rosto. Tento, mas falho. Quando consigo, não é como se realmente tivesse conseguido”.
Assim, em uma espécie de thriller existencial, ele tateia seus instintos e sai em busca dos vestígios que possui do seu irmão: de ônibus, vai até uma cidade pequena, se hospeda em um hotel, depois atravessa de barco um rio até chegar a uma ilha e lá encontra, pela primeira vez, um ponto de revelação daquilo que procura.
O que há de mais potente na escrita de Claudinei é o uso de um exercício de reconfiguração da linguagem no ato de construção da obra, ou seja, na iminência da falta do nome, Claudinei monta um romance cuja linguagem trabalha nas frestas da falta sem buscar preenchê-las. Esse é, a meu ver, o mais instigante e intrigante em Cisne de Vidro, pelo fato de que a obra se torna quase que um romance especulativo, no qual o que se procura não são as respostas para um mistério, mas as trilhas pelas quais a própria escrita vai se guiar. Afinal:
“Deve ser importante ter um nome. Sim, é importante ter um nome, e eu preciso que você tenha um, nem que seja um inventado.”
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Sem pressa, com o cuidado de não preencher demais, Cisne de Vidro especula nomes que não são os verdadeiros (pelo menos é o que achamos) e monta pequenas possibilidades de narrativas para este vazio: o irmão adentrou uma sala com pessoas de roupa branca, ele possuía câncer, o personagem atingiu-o com um cisne de vidro e, apesar de ter sido perdoado, culpava-se por isso.
Outra questão interessante está no fato de que, aos poucos, o romance não é apenas sobre um personagem que não lembra nada de seu irmão, um não-nome de uma pessoa sem rastro, mas um livro sobre esse personagem, como se a ausência do outro fosse também o seu vazio.
Em determinado momento, por exemplo, essa figura está acompanhando uma festa da cidade da janela do seu hotel. Quase despersonalizado, ele percebe que há na multidão também algo do seu irmão ausente: uma espécie de impermanência, por um lado, ou seja, há algo que sempre está deixando de ser em cada um deles, mas também uma força que dá sentido para a própria existência da festa. Diz ele:
“As pessoas se encontram num estado absurdo de impermanência. Nada é por muito tempo e, mesmo assim, existe uma força que dá sentido pra festa.
Ninguém sabe me dizer do que se trata. (…) Não falam porque não sabem o que significa, ou toda a explicação da festa se encontra em um lugar que não o verbal”.
Em busca de conhecer a tal festa, então, o narrador adentra o lugar como se resolvesse se integrar a ele, até que, diante dessa impermanência, apaga em uma praça e acorda em sua cama de hotel sem memória do que se passou na noite anterior, mas com uma esperança de que quem o resgatou tenha sido seu irmão.
Em resumo, estamos diante de um tríplice procedimento de apagamento:
1- uma narrativa que se sustenta justamente em uma linguagem que se expressa por sua especulação diante da carência de memória de sua personagem.
2- Por sua vez, essa personagem, construída para lidar com este vazio, busca um outro, no caso seu irmão, que dê sentido a si. Em determinado momento, diz:
“Acho que é por isso que eu não consigo perguntar, pois a pergunta significa chegada.
A pergunta significa me desfazer de qualquer possibilidade de tecido. É como arrancar a pele fresca, desfazer-se dos cabelos, arrancar as próprias pálpebras e ter problemas de sono pro resto da vida. É como arrancar a pele que cobre os olhos, arrancar as unhas e nessas aberturas sangrar um sangue anoitecido. A pergunta significa partida.”
3 – E, por fim, o irmão ausente que se faz a todo instante presente ainda que na sua transparência. Temos então um presente que se ausenta e um ausente que se faz presente a todo instante, uma ambivalência inescapável de Cisne de Vidro.
Potente do começo ao fim, Cisne de Vidro, de Claudinei Sevegnani, se inscreve numa tradição de autores que fazem da busca pela memória uma matéria viva. De Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, a Vestir os Nus, de Luigi Pirandello, todos possuem personagens que querem ter um pequeno tecido por onde construir suas histórias. E quando elas não aparecem, bom, aí é preciso costumeiramente continuar inventando, escrevendo, especulando…
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