Deserto é onde estamos. Neste junho de 2024, em que o Brasil começa a se referir a um determinado setor da sua política como “bancada do estupro”, por conta do escandaloso PL 1920/2024, penso em Deserto, peça de teatro escrita e dirigida por Luiz Felipe Reis com atuação de Renato Livera, em cartaz no Futuros – Arte e Tecnologia.
Massacrado pela destruição sistemática de políticas públicas para a cultura desde bem antes dos nocautes de 2016, 2018 e 2020, o Rio de Janeiro tem sido uma cidade que expele seus artistas-pesquisadores de teatro ou lhes tira o fôlego criativo ao oferecer-lhes nada, ou praticamente nada, enquanto o circuito de teatro comercial da cidade segue sendo financeiramente recompensado por ser intelectualmente nulo, acéfalo.
A criação de Deserto se nutre do pensamento e da poética literária do escritor latino-americano Roberto Bolaño. Como a literatura de Bolaño, Deserto parte de angústias e a elas se endereça, em alguns momentos com notas graves. Assim, não é só de belezas que o espetáculo se faz. O horror também está lá, marcando sua centralidade na criação do autor, particularmente na sua relação com o deserto de Sonora, no México, e as acachapantes narrativas de feminicídio que marcam a região. O impacto da superlativa quantidade e do grau de crueldade da violência contra mulheres e meninas no noroeste mexicano é como um ponto nevrálgico da peça. A crueza aparece sem aviso de gatilho, como na vida. Depois, fica ali, nos olhando como um fantasma. A peça é marcada pela vertigem do abismo. A relação com o abismo, no entanto, não é só feita de queda, mas também e principalmente daquilo que nos faz conseguir operar a partir do impacto da possibilidade da precipitação.

Entre o horror e o ímpeto da criação artística, entre a visão da morte e a decisão pela vida, está um afeto cheio de complexidades que funciona como um indutor de imaginação: o assombro. Eu acho que a matéria dramatúrgica que me convoca como espectadora desta peça é, justamente, o assombro. Em cena, Renato Livera assume a palavra de Bolaño, com texto criado a partir de escritos e depoimentos do autor.
A dramaturgia transita por diferentes poéticas para apresentar o labirinto da mente de Bolaño com foco nos seus últimos anos. Com um diagnóstico que lhe apontava a proximidade do fim da sua vida, ele optou por dedicar o seu tempo restante à criação de seu último romance, 2666, publicado em 2004, um ano depois da sua morte. Grandiosa, a obra parece ser feita de muitos pequenos detalhes. Digo “parece” porque ainda não terminei a leitura, mas de certo modo conheço o romance pela montagem – também grandiosa – do encenador francês Julien Gosselin, a que pude assistir em Buenos Aires em 2017.
A encenação também é cheia de detalhes, trabalhados nas filigranas da atuação de Renato Livera, que aposta na continuidade da linguagem de outro solo do ator, a peça Colônia, de Gustavo Colombini com direção de Vinicius Arneiro. Há até mesmo um momento de citação, imediatamente reconhecível para quem viu a outra peça, que é quase como uma discreta homenagem a um trabalho de outro tempo, que também precisou atravessar seus desertos. Essa continuidade me parece coerente com o material dramatúrgico do espetáculo e com o material literário do autor em questão. Renunciando à vaidade virtuosista de “mostrar serviço” de atuação com uma proposta diferente, ator e diretor mostram coerência ao traçar uma linha tênue de continuidade com outro projeto, que tinha outra equipe, mas que pertence, por assim dizer, ao mesmo ecossistema da cena contemporânea. E me parece que as recorrências são dispositivos criativos do próprio Bolaño.

Merece especial atenção o momento em que a relação com a projeção em vídeo nos deixa em um estado de suspensão, oscilando de maneira engenhosa entre o que é evidentemente gravado e o que parece ao vivo, como se vídeo, atuação e dramaturgia estivessem dançando na nossa frente. Nessa dança, é como se a peça abrisse uma fenda no tempo cronológico, instaurando uma convivialidade fantástica entre o passado e o presente, abrindo nossa percepção para uma temporalidade múltipla. Esse momento da peça forja uma duração, um feixe continuado no intervalo entre uma espécie de convocação lançada no passado por Bolaño e respondida no processo criativo da peça por esses artistas que se sentiram interpelados por aquela convocação. Essa resposta, gravada durante o processo criativo, ecoa no momento presente da fruição do espetáculo – que agora já é um passado no repertório de cada espectador que assistiu à peça.
Essa trilha no tempo, formada por esse jogo de pergunta e resposta entre o passado de um escritor e o presente de artistas de teatro, me trouxe a convocação para finalmente começar a ler 2666. E eu me senti interpelada a ponto de não poder não escrever sobre essa peça. Tenho me referido a essa temporalidade que se instaura no teatro quando a cena assume a responsabilidade de responder a convocações de artistas já falecidos como uma temporalidade tentacular, um tempo-polvo, que nos faz saltar da temporalidade linear e viajar no tempo daqueles que são nossos interlocutores mas não são nossos “contemporâneos sincrônicos”. Essa elaboração é uma espécie de resposta às ideias da pesquisadora estadunidense Rebecca Schneider – um assunto para um texto mais longo, quem sabe em outra ocasião…
A pesquisa de Luiz Felipe Reis se posiciona diante da obra de Bolaño e da monumentalidade literária de 2666 com desejo de criação. Ao seu redor, as atuais condições de se fazer teatro comprometido com a pesquisa no Rio de Janeiro: um deserto. Ao seu lado, as parcerias que tornam a travessia possível: Renato Livera, Julia Lund com quem compartilha a Polifônica Companhia, José Roberto Jardim, Lavína Bizzotto, Pedro Sodré, Julio Parente, entre outros e outras.

Em 2020, assisti a uma conversa ao vivo no YouTube do Itaú Cultural, na qual Ailton Krenak fala a Christian Dunker sobre a relação do personagem central do filme Lawrence da Arábia com o deserto. Os beduínos estranham a sua fascinação pelo deserto, onde dizem que “não há nada”. Krenak defende que não há lugar no mundo em que não se possa viver – não por uma suposta adaptabilidade dos seres humanos, mas pela sua disposição para constituir uma ecologia para esse lugar. Diante do Deserto, não se pode recuar, há que se atravessar. Para tanto, é preciso ecologizar o deserto, criar ali um mundo habitável a partir das materialidades existentes. Na travessia, cria-se o que se precisa para permanecer vivo: “canções, ritos”, diz Krenak. Peças de teatro, acrescento. Em vez de “viver sem nada”, Krenak sugere que se aprenda a “viver com nada”. Evidentemente, não é com “nada”, literalmente, que o trabalho foi feito. A peça tem patrocínio da Oi. Só que para quem conhece e vislumbra as condições de criação que resultaram em espetáculos de teatro de grande fôlego e repercussão, não é possível acreditar que um pequeno edital no meio do nada é um oásis. Não é. Mas é um nada com o qual se pode trabalhar por um curto período, extraindo ao máximo o que é possível fazer com os recursos disponíveis – como faz esta peça.
Vislumbro neste espetáculo a construção de uma ecologia específica. Deserto é uma peça que se posiciona diante de um aspecto nuclear – embora não exclusivo – da criação artística: a passagem de um estado de assombro (que poderia ser paralisante) para a tentativa de algum tipo de ação, de intervenção, de criação. Esse processo, que aparece em cena a partir da vida e da obra de Bolaño, é um processo análogo à experiência de vida de quem tem um compromisso ideológico com o seu ofício, de quem vive as horas dos seus dias canalizando suas interrogações para tentativas (e fracassos) constantes de elaboração e reelaboração. A implicação ética dos artistas convoca a implicação ética dos espectadores. A frequência de fruição de Deserto se dá quando nenhuma das partes está ali por um motivo fútil. E o que torna tudo mais intenso é que a relevância simbólica da peça está intrinsecamente alinhada com a elaboração poética da cena. Uma coisa não aparece sem a outra.
É nesse sentido que a crítica e a criação atuam na mesma tônica: fazem seu trabalho irrigando o campo, ecologizando o deserto, mesmo que para a próxima etapa da travessia. Ou ainda, afinando a escuta para quem pode vir a responder prontamente a uma próxima interpelação do teatro.

A propósito, o espaço Futuros Arte e Tecnologia precisa ser ecologizado. Quando comecei a escrever crítica de teatro, há mais de 15 anos, o então chamado Oi Futuro era um espaço de inegável relevância para o teatro da cidade. Durante anos, com o trabalho do precocemente falecido Roberto Guimarães, o centro cultural da Rua Dois de Dezembro foi um lugar catalizador de experiência e pensamento sobre a cena. Hoje, o espaço parece um deserto. É preciso atravessar a aparência de abandono para chegar no oásis que nos espera dentro da sala de teatro. A essa altura, nem preciso reforçar o quanto a travessia vale a pena. A propósito, a sala bem poderia levar o nome do seu saudoso programador – desde que o espaço consiga se reerguer e fazer jus à própria história. A temporada de Deserto tem tudo para ser um passo firme nessa direção.
Confira a fala de Ailton Krenak mencionada no texto:
Ficha técnica
Direção e dramaturgia original: Luiz Felipe Reis
Baseado na obra de Roberto Bolaño
Atuação: Renato Livera
Direção assistente: Julia Lund
Interlocução dramatúrgica: José Roberto Jardim
Direção de movimento: Lavínia Bizzotto
Cenário: André Sanches e Débora Cancio
Criação de vídeo: Julio Parente
Assistente de vídeo e operação de vídeo e luz: Diego Ávila
Luz: Alessandro Boschini
Trilha sonora: Pedro Sodré e Luiz Felipe Reis
Figurino: Luiza Mitidieri
Design gráfico: Bruno Senise
Fotografia: Renato Pagliacci
Assessoria de imprensa: Ney Motta
Direção de produção: Sergio Saboya (Galharufa)
Produção executiva: Roberta Dias (Caroteno Produções)
Idealização e coprodução: Polifônica