“Hiroshima, meu amor”, de Marguerite Duras: o silêncio ainda pode amar?

Quando assisti Hiroshima, meu amor, mais ou menos uma década atrás, lembro de ter sentido que era um filme de silêncios. Não que fosse um filme quieto, de poucos diálogos, mas um filme de silêncios no sentido de que tudo que era dito e não dito, feito e não feito, era atravessado por uma experiência que não era possível narrar. Só depois descobri que o filme é baseado em roteiro da escritora francesa Marguerite Duras, a convite do diretor Alain Resnais. Aí as peças começaram a se encaixar.

Hiroshima, meu amor, o livro de Marguerite Duras, é uma publicação da Relicário Edições, com tradução de Adriana Lisboa, do roteiro de filme homônimo. Acompanhado de um prefácio que contextualiza ambas as obras – livro e filme – e um apêndice com textos e exercícios de Duras para chegar ao roteiro final, o livro ganha um toque especial.

O filme é dirigido por Alain Resnais e foi lançado em 1959, tendo se tornado até hoje uma obra celebrada como uma das mais completas da cinematografia mundial. O livro, porém, não fica nem um pouco atrás. Quem for mergulhar nas páginas da obra, vai notar que já está contido nela grande parte do que fez o filme ser o que é, num amálgama perfeito entre duas formas tão distintas de fazer arte. Mas o que seria isso?

Leia também: “Olhos azuis cabelos pretos” e “A puta da costa normanda”: uma Marguerite Duras mais intimista?

Eu te encontro.
Lembro-me de você. Aquela cidade era feita do tamanho do amor.
Você era feito do tamanho do meu próprio corpo.
Quem é você?
Você me mata.
Eu tinha fome. Fome de infidelidades, de adultérios, de mentiras e de morrer.
Desde sempre.
Eu duvidava que um dia toparia com você.
Eu te esperava com uma impaciência sem limites, calma.

De um lado, o livro serve para os amantes do cinema e do filme entenderem a materialidade formadora da película, assim como serve para lermos, nas descrições de Duras, uma espécie de anotação ou momento primeiro do filme. É possível, por exemplo, ver a tentativa de Duras em descrever uma sequência de imagens que seriam transpostas para o cinema. Durante a leitura, me peguei diversas vezes com a sensação de que estava diante já de um livro-filme ou de um filme-livro. Por outro lado, se evidencia também a força da caneta de Duras na escrita da obra como um objeto autônomo, criação poética do texto para o texto. Acompanhamos suas reflexões em torno de um amor latente (e proibido) diante da reconstrução de Hiroshima e da vontade de traduzir sentimentos complexos sem precisar dizer, mas mostrar. Uma tentativa de fazer sentir sem que fosse necessário verbalizar, como se o sentimento fosse algo que se oferece e se traceja a alguém.

É neste sentido que podemos voltar ao começo da resenha e juntar a peça que faltava: diante do horror da destruição de Hiroshima, o amor pode parecer uma banalidade. Um amor proibido então, é quase tolo. A alteridade, tão essencial ao amor, fica embrutecida frente a incapacidade de ver outro no outro após a explosão de uma bomba nuclear. A bomba muda, de vez, uma forma de vida. O amor, então, se constrói pelos silêncios, pelas ruínas, pelos destroços. Depois da bomba, amar em Hiroshima nunca mais será a mesma coisa.

Em Hiroshima meu amor, o que vemos é uma cidade que se reconstrói antes do amor. Enquanto isso, as feridas do passado, seja as de uma Nevers de uma francesa, seja os traumas de uma guerra, ainda falam muito alto. Ou melhor, as dores calam muito alto.

Por isso que Duras escreve. E Resnais filma. E a gente lê e vê.

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