“Hwæt!” Era gritando essa palavra que J. R. R. Tolkien, o genial autor de O Senhor dos Anéis, iniciava suas aulas de inglês antigo na Universidade de Oxford. Os alunos, temerosos, corriam para seus lugares: eles não sabiam que o professor estava apenas recitando versos de Beowulf e outros poemas…que inclui, claro, o mais célebre poema da literatura anglo-saxônica, composto no século VIII e que até hoje entusiasma leitores no mundo inteiro, de investigadores acadêmicos a fãs de RPG.

Ambientado na Escandinávia dos séculos V e VI, em meio a uma natureza mítica, formada por mares, penhascos, pântanos, cavernas e seres fantásticos saídos das sombras, e tendo como centro da vida social o grandioso “salão do hidromel”, o poema narra os feitos do herói Beowulf, que livra a corte do rei Hrothgar do temível Grendel, um monstro aterrorizante, e, cinquenta anos depois, tem um novo e decisivo confronto, desta vez com um dragão alado.
Na orelha do livro, Nachman Falbel, Professor Titular de História Medieval da Universidade de São Paulo, escreve:
A presente tradução ao português de Beowulf, um dos mais grandiosos poemas heroicos da literatura mundial, é uma valiosa contribuição ao público leitor de nosso país, que, desse modo, pode tomar contato com uma obra representativa da cultura medieval. Escrito em inglês-saxônico — Old English —, o extraordinário texto foi milagrosamente preservado em um único manuscrito, conhecido sob o nome Cotton Vitellius A. XV, em um volume da antiga coleção de Francis Cotton, atualmente conservado na biblioteca do Museu Britânico, em Londres.
O poema, que reúne 3.182 versos, redigido por volta do ano 1000, é um dos mais longos poemas do período inaugurado pelo rei Alfred, o Grande (849-899), cujo reinado assinala um momento de recuperação e florescimento político e cultural da monarquia anglo-saxônica após longo período de anarquia e lutas intestinas, provocadas pelas invasões escandinavas no século VIII. Apesar das divergências existentes entre os estudiosos sobre a data de elaboração do texto, cujo conteúdo teria se originado, em parte, de estratos de uma longa tradição oral, tudo indica que sua redação final tenha se dado posteriormente ao período que abrange elaborações feitas durante o tempo dos primeiros reis anglo-saxões.
Esta obra de intensa poesia, repleta de imagens inesquecíveis e com ecos da Ilíada, da Eneida, dos Evangelhos, da mitologia nórdica e das grandes sagas germânicas, capturou a imaginação de vários artistas e escritores de nosso tempo, entre eles Jorge Luis Borges, que assina o prefácio deste volume.
“O texto apresenta narrativas originárias dos séculos VII e VIII, porém seus componentes mitológicos se vinculam à ancestralidade e se relacionam à história anterior da imigração para as ilhas Britânicas, o que vem acrescentar dificuldades para o conhecimento dos múltiplos aspectos que o conteúdo do poema apresenta.
Na verdade, nem sabemos se o personagem central, o herói e guerreiro Beowulf, que dá nome ao poema, alguma vez existiu, e, do mesmo modo, se seus feitos foram reais. Mas histórias semelhantes, de heróis mitológicos que lutam e se confrontam com monstros do mundo subaquático e dos abismos que ameaçam os homens e os viventes terrestres, encontram-se em obras literárias de outros povos, não deixando, por vezes, de refletir um fundo histórico.” completa Falbel
Publicado em edição bilíngue, Beowulf e outros poemas anglo-saxônicos (séculos VIII-X) conta com a bela e fluente tradução em prosa de Elton Medeiros, autor também das elucidativas notas e de um abrangente posfácio em que contextualiza histórica e literariamente a produção da obra bem como sua recepção, desde a descoberta do manuscrito, em 1705, até os mais recentes desdobramentos da crítica no século XXI.

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Sobre o tradutor
Elton Oliveira Souza de Medeiros nasceu em São Paulo, em 1977. Graduou-se em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e, em 2006, defendeu dissertação de mestrado a respeito do poema Beowulf e sua relação histórica e literária com o mundo norte-europeu medieval. Em 2011, defendeu sua tese de doutorado, na área de História Social, também na USP, voltada à análise da literatura religiosa anglo-saxônica. Entre 2013 e 2014, fez estágio pós-doutoral na Faculdade de Humanidades e Ciências Sociais da Universidade de Winchester, na Inglaterra
Leia o resto da orelha do livro aqui:
Em Beowulf, a fantasia e a imaginação se materializam na clara menção dos povos suecos e daneses, que historicamente se confrontaram em guerras sob a liderança de reis cujos nomes podem ser identificados no poema. Também o texto toma vida ao mencionar ritos, costumes, crenças religiosas, leis e regras de conduta social que retratam a composição social e as instituições, se considerarmos o fundo histórico da Escandinávia do século VI e as pistas arqueológicas trazidas à tona em escavações realizadas na Inglaterra. Sob esse aspecto, Beowulf embute em sua narrativa o éthos de uma sociedade que absorveu elementos provenientes da síntese de duas fontes, isto é, paganismo e cristianismo. Nela, configurou-se a tradição germânica pré-cristã, com os valores de uma aristocracia guerreir a, tais como a coragem, a bravura, a lealdade, ao mesmo tempo em que se absorveu gradativamente a espiritualidade da tradição bíblica judaico-cristã. Em Beowulf, o herói-guerreiro deve enfrentar Grendel, um monstro que o poeta-autor lembra estar associado à maldição de Caim, do Gênesis. Estudiosos como R. E. Kaske irão ainda mais longe, ao sugerir uma correspondência da narrativa sobre os monstros do poema e o pseudoepigráfico Livro de Enoch, por exemplo. O cristianismo, com o passar do tempo, moldará a cultura medieval, sem, no entanto, eliminar por completo as obscuras raízes do longínquo passado daqueles povos.
Desde o início do século XVIII, uma galeria de nomes expressivos de historiadores, filólogos, literatos e estudiosos de outras áreas se debruçaram sobre o manuscrito, atraídos não somente pelo desafio científico e entendimento do complexo imaginário que caracteriza essa peça literária, mas também fascinados pelo esplendor do mundo mítico-mágico que nela se encontra, ao ponto de inspirar escritores e a cinematografia contemporânea.
A competente e apurada tradução realizada por Elton Medeiros é resultado de seu profundo e especializado conhecimento da história, da literatura e da língua anglo-saxã, evidente no esclarecedor e erudito posfácio que acompanha o texto. Ao tradutor, o agradecimento e o sincero apreço por este notável empreendimento intelectual.
Nachman Falbel
Professor Titular de História Medieval da Universidade de São Paulo