O professor e geógrafo Milton Santos ficou esquecido pelos acadêmicos brasileiros durante décadas. Felizmente, nos últimos anos seu pensamento tem sido resgatado e muito se tem refletido sobre os seus escritos. Porém, muitos deles ainda são pouco acessíveis. Para isso, o NotaTerapia separou uma de suas conferências na íntegra em que ele reflete sobre um dos de seus principais conceitos: a geografia cidadã.
Veja:
“Vou começar como faço sempre, dizendo o seguinte:
as aulas fáceis não têm o menor interesse; os livros fáceis não têm o menor interesse; as conferências fáceis são uma chantagem em relação aos que se dispuseram a escutá-las.
Estou dizendo isto com o temor de que para certos dos presentes algo do que vou dizer possivelmente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitando-lhes a tolerância, mas também a atenção.
O tema que me foi encomendando é “Por Uma Geografia Cidadã”. Tomei a liberdade de atribuir-lhe um subtítulo e esta conferência vai se chamar “Por Uma Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Existência”. Esta conferência vai se processar em quatro tempos ou pontos. Primeiro ponto: Por Uma Geografia Cidadã – por que uma Geografia Cidadã? Em outras palavras, para que trabalhamos intelectualmente hoje? Pela necessidade da volta ao Homem. Segundo ponto: Geografias e Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal. Já falamos nisto em outro lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geografia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espaço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o valorativo e não sobre o adjetivo. Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de cotidiano que os geógrafos frequentemente incorporam a partir da Sociologia, quando é possível fazê-lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Geografia, o que nos deveria permitir enriquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Epistemologia da Existência. Em outras palavras, trata-se da reconstrução do método através da vida, isto é, do Homem vivendo.
Por uma Geografia cidadã _ Por que uma Geografia cidadã?
Como primeira observação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste país, todos não são igualmente cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e havendo os que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam privilégios e não direitos.
Duas questões aqui se colocam do ponto de vista da nossa disciplina: a primeira é como ajudar a construir a cidadania através da Geografia e a segunda é como construir a Geografia através da ideia de cidadania, tarefas inseparáveis. O que seria esta geografia do cidadão? Seria uma geografia engajada? Cabe conversar um pouco sobre essa palavra. Quando utilizamos a expressão “geografia engajada”, estaremos falando de uma geografia engajada a priori, decidida a encetar a tarefa da crítica, mesmo antes de concluir a tarefa da análise. Mas isto pode ser apenas uma geografia com um discurso vazio e vadio, incapaz de oferecer aqueles instrumentos analíticos de que necessitamos para enfrentar a dura tarefa de interpretar a realidade social.
A análise tem que ser pertinente. Análise pertinente significa que o analista sabe claramente o que está fazendo. Aliás, a dificuldade da participação da Geografia nas interdisciplinaridades vem do fato de que raramente uma certa geografia sabe o que está fazendo. Se os próprios geógrafos não são capazes de oferecer às outras disciplinas uma visão clara da sua pertinência, todo debate se torna impossível. O debate só é possível quando o que fala ou escreve oferece claramente o sistema que preside a indagação feita à realidade. Ora, esta geografia do cidadão, como a geografia taut court, necessita de uma análise fundada nessa noção de pertinência.
Poderia também fazer uma outra pergunta: será que a geografia do cidadão se opõe à geografia dos experts? Creio que sim. E aí perguntaria, em adição, se pode haver um expert generalista? Pode ser que haja. O problema com o expert, pessoa geralmente externa às coletividades às quais vem estudar, é a sua freqüente incapacidade em participar do cotidiano e em perceber, sem partis pris, o funcionamento político das coletividades. Na medida em que, a partir do cotidiano, o lugar hoje se impõe como dado central das pesquisas em ciências sociais, daí vem a fragilidade da geografia dos experts.
Não esqueçamos esta verdade cristalina: o valor do homem depende do lugar onde está. Nossa dificuldade em relação às outras ciências sociais é exatamente esta, porque o lugar é praticamente desconhecido de disciplinas sociais, como a economia, a sociologia e outras. É que a noção de espaço praticamente escapa a estas disciplinas. O lugar deve ser considerado como um conjunto de objetos e, ao mesmo tempo, o receptáculo de um feixe de determinações, não apenas de algumas, como na economia (determinações econômicas); ou na sociologia (determinações sociais); ou na antropologia (determinações culturais); ou nas ciências políticas (determinações políticas); mas de todas as determinações. Então, a geografia do cidadão começa por recusar o economicismo triunfante, que faz do economista não um especialista da sociedade, mas um servo da técnica, um trabalhador em benefício da administração dos negócios aos quais as técnicas se aplicam, como se fossem absolutas, sem necessidade de relativizá-las.
A geografia do cidadão sugere, também, o abandono do sociologismo simplório. De uma maneira geral, os sociólogos não oferecem metáforas espaciais, lemos que agradecer-lhes, já que as metáforas chamam a atenção para aspectos das questões e os põem em relevo. Só que as metáforas não constituem sistema e, por conseguinte, não ajudam na produção de conceitos e nem de teorias, fora das respectivas disciplinas.
Geografia e geografias, espaços adjetivados e espaço banal
As diversas geografias, isto é, a geografia dos transportes, a geografia do comércio. a geografia da população, a geografia da indústria, etc … são parcialidades que levam em conta aspectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar para a análise, fazê-lo, também, para síntese, o que é um grande risco. Estas espacializações singulares, como os transportes que fluem numa área, ou como o comércio, alteram o significado de uma região. Não é o espaço que se estuda assim, mas sim fragmentos dele. Quando me refiro à realização da economia, da sociedade, da cultura, da politica, o que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço econômico, o espaço cultural, o espaço político, o espaço social, mas o que quero entender e preciso entender, é o espaço banal.
O espaço banal é o espaço de todos os alcances, de todas as determinações; o espaço banal é o espaço de todos os homens, não importam as suas diferenças; o espaço banal é o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. O espaço desta cidade de Passo Fundo, onde todas as pessoas – não importa a sua riqueza, a sua origem – participam, onde todas as instituições presentes participam da vida, assim como todas as empresas presentes, a isto se chama o espaço banal. E é este espaço banal que é o espaço da Geografia, diferente, pois, dos espaços adjetivados. E existe este espaço banal? Posso significá-lo através de um discurso como um dado objetivo?
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Milton Santos, foi Professor titular de Geografia Humana na Universidade de São São Paulo Texto redigido a partir da gravação da conferência de abertura do XVI Encontro Estadual de Professores de Geografia. Conferência publicada originalmente no “Boletim Gaúcho de Geografia” (UFRGS), Porto Alegre, nº 21 p.7-192, agosto 1996.
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