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O Som e a Fúria, de William Faulkner, é um dos grandes marcos da literatura americana e mundial. O livro conta a história da família Compson e sua lenta e trágica decadência como uma família oligárquica americana. Isto é feito a partir de duas temporalidades distintas: os dias que antecedem a Páscoa de 1928 e um dia de sol próximo a Harvard em 1910. A narrativa, contada alternadamente pela visão de diversos personagens, no entanto, não acompanha a cronologia do relógio, mas tem um tempo psicológico, da memória ou, então, do próprio fluxo da narrativa de Faulkner. Aos poucos, o que se revela é uma trama quase como repetição, com nomenclaturas que se sucedem e um destino que, apesar de evidente desde o caos inicial, é praticamente impossível se escapar. Com certeza, um dos livros mais imponentes da literatura.
Quando eu li o livro pela primeira vez, tive muita dificuldade com a passagem dos tempos, os nomes dos personagens e o caminho da narrativa. Tive que parar algumas vezes para procurar artigos e resenhas para me auxiliar na leitura. Por isso, resolvi fazer um pequeno mapa com 7 pontos que podem ajudar qualquer um na leitura de O Som e a Fúria. Aproveitem:
1- Pensar no nome do livro: O Som e a Fúria
O título do livro é um referência à peça Macbeth, de William Shakespeare que, em monólogo, diz que a sua é uma “uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”. Isto pode remeter tanto à narração do primeiro capítulo, feita por Benjamin (Benjy), que tem deficiência mental, quanto pelo próprio papel do autor William Faulkner que compõe sua narrativa através de uma forma um tanto quanto pulsante e convulsa, diria eu, próxima de uma escrita que “enlouquece”. O Som e a Fúria, de alguma maneira, pode servir de alegoria para tudo que está no livro: um mundo violento, raivoso e, ao mesmo tempo, que não consegue, nem por um instante, se calar. Em dois momentos, Faulkner reflete explicitamente sobre o som e a fúria. Repare que no primeiro ele atenta para um ar pesado de sons que fazem propagar mais até que sons mais frágeis e, no segundo, diz que, toda fúria é sempre resultado de um acúmulo de fúrias. Veja os trechos:
“Até o som parecia falhar neste ar, como se o ar estivesse gasto de tanto carregar sons. O som de um cachorro vai mais longe que o de um trem, no escuro pelo menos. E o de algumas pessoas também.”
“nenhum homem faz isso logo na primeira fúria de desespero ou remorso ou arrebatamento ou o remorso ou o arrebatamento não são particularmente importantes para o homem”.
2- A Confusão de Tempos
Wolfang Iser e Hans Robert Jauss são precursores da chamada de “estética da recepção” que busca analisar obras baseada na série de recepções que ela recebe, ao invés de focar, como se fazia tradicionalmente, no autor, no contexto histórico e na forma/conteúdo. Eles ressaltam uma característica de toda obra, o chamado “horizonte de expectativa”, a ideia de que as primeiras frases de uma obra criam um “imaginário” no leitor e que, a partir dele, o autor ou autora com as formas e fórmulas em seu quebra-cabeças de linguagem. Em O Som e a Fúria, este jogo causa muitas confusões.
É preciso estar atento para o primeiro capítulo narrado por Benjamin, um rapaz com deficiência mental. Faulkner joga e confunde nosso horizonte de expectativa: o que a gente tem acesso é uma narrativa repetitiva, entrecortada, repleta de ações breves e aparentemente sem sentido. Na realidade, o que nós temos é um Benjamin que – e isto é o mais importante – confunde passado com presente, mistura suas memórias com suas ações, interrompe fluxos com suas crises de choro, além de ser incapaz de diferenciar alguns personagens uns dos outros. Toda nossa leitura, então, vai ser contaminada pela visão de Benjamin, mas fique atento: ela provavelmente vai te enganar.
Aparentemente, o primeiro capítulo conta a história de Benjy e um rapaz negro passando por uma cerca de um campo de golfe e, posteriormente, acompanhando Caddy que sobe numa árvore para ver um velório da janela e mostra a calcinha. Ao ler, desconfie até disso.
3- A Ordem dos Capítulos
No decorrer do livro, é muito comum que a gente se confunda com os períodos e tempos, na medida em que, apesar de todo capítulo começar com a marcação da data exata e que a narrativa se passa, ainda assim, há um fluxo psicológico que impede a história de permanecer em seu tempo, fazendo alternâncias e alterações de fluxo. Além disso, alteram-se também os personagens – pelo menos em um tempo da memória – o que nos deixa a todo instante em suspenso. Trata-se de um livro que é preciso estar atento a todo instante. No entanto, para facilitar, a ordem dos capítulos são:
- 1928 – narrativa de Benjamin, dias que antecedem a Páscoa, sexta-feira
- 1910 – Quentin narrando no seu período da faculdade quando pretende tentar suicídio
- 1928 – narrativa de Jason, dias que antecedem a Páscoa, sábado de aleluia
- 1928 – Narrativa em terceira pessoa, focada na figura de Dilsey, domingo de páscoa
- 1699 – 1945 – Pequena biografia da família Compson, incluindo os negros que moram com eles
4- Os personagens
Os personagens são o principal foco de confusão na obra, principalmente depois de lermos a narrativa convulsa de Benjamin. Em um determinado momento, a personagem é masculina, em outro é feminina, em outro um rapaz é o Pai, em outro é o filho. Sem mais informações para não estragar a leitura, a lista de personagens é:
Quentin Tompson
Dilsey Gibson
Jason Compson III
Jason Compson IV
Benjamin Compson
Miss Quentin Compson
Candance Caddy Compson
Caroline Bascomb Compson
5- As questões raciais
Não se pode ler O Som e a Fúria ignorando as questões raciais do sul dos Estados Unidos. A obra retrata com bastante crueza a relação que os brancos, mesmo aqueles em franco declínio social e financeiro, possuem com os negros. A figura de Jason IV, por exemplo, é particularmente racista, com frases que deviam ser comuns naquele contexto. No entanto, no final, com Dilsey assumindo o protagonismo da narrativa, podemos ler o mundo a partir de seu prisma e de suas questões individuais. Ignorar isto para focar no drama dos Compsons, seria deixar de lado uma parte essencial do livro. Sobre a força de Dilsey, que diz que os brancos ficam cansados por qualquer coisa, enquanto ela envelhecia e permanecia fazendo todo o trabalho que fazia como jovem, só temos uma frase a dizer. E dela própria:
Os brancos morrem também. A tua avó morreu que nem qualquer negro.
6 – As melhores frases do livro, que você pode ler aqui!
7- O Filme, de 1959, disponível online:
Imagem de capa: Ler Ver Te