“Amor Maldito. Sexo diletante. Feminismo. Ócio da burguesia privilegiada. Choque de gerações. Falsos valores sociais. Mediocridade e intelectualismo. A arte como via e conhecimento e esperança. Todos esses temas abrem um novo e revolucionário ciclo de romances de Assis Brasil.” Esta é a sinopse da quarta capa de mais um livro de Francisco de Assis Almeida Brasil, o escritor piauiense com uma das trajetórias literárias mais curiosas da história da literatura brasileira. Com mais de 140 livros publicados, o autor nos apresenta este, escrito ainda da década de 1980, no final dos anos de chumbo e começo de uma abertura política, chamado O Destino da Carne.
O Destino da Carne, de Assis Brasil, conta a história de uma família típica da burguesia carioca de Copacabana, trazendo consigo todas as suas potências e contradições. O foco da narrativa está na figura de Celina, filha mais velha, desbocada, rebelde, com forte caráter de desbunde advindo de um pensamento de contracultura que rejeita o status das instituições, principalmente da família e do papel da mulher. No entanto, ambivalentemente, mantém uma relação quase obsessiva com Artur, um pintor estranho e conservador, apesar de um discurso de marginalidade de pensamento que lhe fascina pela força reativa em relação a vida e lhe traz o desejo de ser uma mulher tradicional, tal como sua mãe, tal como se espera dela.
Ao lado de Celina, sua mãe Carmem, uma mãe de família de classe média como qualquer outra, mas que, em segredo, frequenta um prostíbulo em que cobra para fazer sexo, trazendo um pouco de aventura secreta para a sua vida de mulher “de casa”. Do outro lado, Orlando, pai de Celina, frequentador da casa de um rico e poderoso viciado em bebidas e jogos de cartas. Orlando vai todo dia na casa deste homem apenas para se relacionar com sua esposa, uma mulher sensual que, casada por dinheiro, vive uma vida de luxúria e ostentação dos bens do marido rico. Além disso, há também Orlandinho, irmão de Celina, que namora uma moça ingênua com quem parece querer construir uma família, mas que, concomitantemente, vive uma sexualidade conflituosa entre a hétero e a bissexualidade em festas com uso de drogas, nudez e sexo casual.
O Destino da Carne se organiza a partir de capítulos que se alternam em focos de cada uma das personagens. Assim, temos um capítulo para cada membro da família, começando por Celina e, no fim, retornando para ela que encerra a história. Entretanto, não se pode dizer que cada capítulo seja isolado, como se cada um tratasse da visão de mundo de cada personagem. Pelo contrário, a cada trecho o que se vê é um embate de línguas construído a partir de múltiplas visões, cujo objetivo, no entanto, se vê frustrado por conta de uma estrutura que a todo instante é obstruída pelas demais figuras, pela própria linguagem, por travessões, parênteses, discursos indiretos entre aspas. Assim, mais do que visões, temos choques, dialéticas, encontros ambivalentes e estruturas em crise. Além disso, tudo parece girar em torno de uma visão de mundo que organiza o horizonte do livro e este é o de Celina, por isso o que mais se destaca são estes traços de uma rebeldia da linguagem, de passagem de imagens, da apropriação de citações, que aqui chamamos de contracultura.
Este pensamento de contracultura advém, destaca Gilberto Mendonça Teles, de uma visão de Assis Brasil como aquele romancista que “olha sensualmente para as coisas”. Isto pode ser visto na medida em que, paralelamente à narrativa, é possível ler o romance a partir de uma escrita sobre “o destino da técnica”, posto que Assis utiliza o rigor para alucinar suas formas. Logo no começo da obra, o autor reflete sobre os motivos de se fazer literatura, apontando para o fato de que a própria organização da história literária se dá através do empilhamento de biografias de mortos e suicidas:
“A dúvida maior: por que estudar literatura? Aqueles pobres homens todos mortos – alguns pomposos, outros ridículos perseguindo a fama, como um cão persegue o osso – o cheiro longínquo da fêmea no cio – a gloriosa Glória, uma mulher sem dentes, de seios postiços / os tuberculosos românticos aceitando o mal como uma dádiva: tudo como um tributo de sangue à arte / pela posteridade / o mortal está morto, viva o imortal.”
De alguma maneira, o romance traça um trajeto em que busca desfazer essa espécie de literatura que se pauta nas palavras, na história, nas estruturas tradicionais, e se montar a partir de uma literatura que se dá no corpo, na carne. Seu objetivo parece ser a montagem de uma relação dialética entre razão e moral que culmine, no fim, neste “acidente da carne” em que contingências falam mais que os gêneros e a linguagem fala mais que a língua. Para que palavra diga mais que história. Por conta disso, Gilberto destaca também uma espécie de “forma em caleidoscópio” que o romance assume:
“Graças a um sem número de artifícios que atuam principalmente no plano da expressão, as situações dramáticas, o cenário, o tempo e até o comportamento ideológico de cada personagem é submetido a uma série de pressões linguísticas de que resultam paralelismos, repetições, expectativas, paradoxos, confrontos, e ambiguidades”.
O mote parece tirar o romance de seu próprio eixo e fazê-lo girar sobre si, como se estivesse em uma espiral, ou, para acelerar este movimento, no olho de um tornado: o foco é evitar, a todo momento, as formas vazias e instituídas. Em determinado momento, por exemplo, a obra refaz/rechaça um tipo de formulação de vida como instituição, como cotidiano, como trajetória singular, a partir da ideia de nada:
“Você não sabe o que é o nada? Você morre e acaba é enterrada para o banquete os vermes, mas isso ainda não é o nada. No dia seguinte você é esquecida, não mais lembranças, não mais memórias, o nada está engrossando o seu caldo do nada – as gerações vão passando por cima do seu corpo de nada, por sobre a sua alma de nada, por sobre o nada das recordações e dos sonhos. – Aí o sol começa a inchar e a crestar e a crosta corrompida do planeta, até tudo explodir e viver nas cinzas e isto é o nada total e único. Isto é o que a espera.”
Logo em seguida, ele aponta para uma vida que se deve dar como princípio de prazer, aproximando-se do pensamento de Nietzsche em que se encontra na rejeição ao nada, à vida niilista, uma possibilidade de vida que se encaminha para a morte (como toda morte como estatuto de desejo). É interessante, também, apontar que, neste caso, há também um desfazimento da ideia de corpo para engendrar um projeto da carne: deixa-se, de alguma maneira, de ser um conceito – o corpo – para ser matéria – a carne – aquilo que entra em estado de putrefação, até o limite de se tornar carcaça:
“o destino a carne era ser gozada e retalhada de prazer até a exaustão, ou todos estariam se traindo se fugissem dessa liturgia física e inadiável.” (p. 123)
Duas outras características que se pode destacar nesta aproximação com um estatuto de contracultura são o uso, de um lado, de termos que se articulam em sua repetição/desfuncionalização como “afetado/afetivo”, “vendedores/vencedores”, quase montando aquilo que Lewis Carrol chamou de palavra valise, mas de modo diverso; e o uso de barras (o símbolo /), muito comum na poesia beat americana, mas também na poesia brasileira de Roberto Piva. Essas barras, que visam dividir frases que devem ser lidas em versos – como se ao invés de frases, estivéssemos lendo o curso de um rio – aparecem emulando/sendo poesia, sempre utilizadas em momentos em que há citações de fontes as quais Assis Brasil não compartilha conosco e nos impõe como um desnome, sem autoria, mas que podem servir de exercício de decodificação, pois encontramos nelas Machado de Assis, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Elliot, Junqueira Freire, Mallarmé, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Sartre. E não venha dizer que esta erudição não se encaixa no pensamento de contracultura. Não se pode esquecer de Roberto Piva, para quem a erudição, em síncope, leva a alucinação de todas as formas que transam entre si em uma grande orgia das línguas.
E mais, Gilberto Mendonça Teles, faz também uma interessante análise sobre a função, também, dos parênteses na obra (destaca inclusive um que se estende por quase 40 páginas). Para ele, pelo livro começar pela visão de Celina e se encerrar nela, o próprio romance é uma espécie de parênteses da visão de mundo da menina – entre seus 15 e 30 anos – em que explora sua sexualidade e seu pensamento em segredo frente à margem da família, ao mesmo tempo em que as demais narrativas se transformam em espécie de partes internas destes parênteses. Entretanto, para nós, parece mais interessante ampliar a ideia de barra/parênteses para ver todo o romance como tal: de um lado, as barras, que incorporam vozes e compõe uma poesia, um rio que atravessa na passagem da obra e, de outro, um parêntese, uma espécie de escrita ao lado, que não é centro, que não produz qualquer essência mas faz um caminho, uma margem, tal como a contracultura faz, como se dançasse em sua espiral uma bossa-nova estagada de João Gilberto ou um concerto de Jazz.
Mendonça Teles destaca, também, um Assis Brasil como um autor cheio de “preconceitos técnicos” e literários, mas nesse caso como caráter positivo. Ele aponta que, a todo instante, Assis parece estar “cheio de si mesmo” e, por medo de se repetir, precisa “muita técnica para eliminar os preconceitos ainda existentes quando se fala em renovação do romance e dos expedientes”. Ele destaca que Assis Brasil, de certa forma, encarna a máximo de Bakthin, para quem é preciso adaptá-lo “às novas formas de recepção silenciosa, isto é, a leitura”.
Ao fim, O Destino da Carne se apresenta como um romance que retrata toda a hipocrisia e demagogia de uma classe média que planeja sua vida a partir de planos ideias, mas utiliza seus privilégios e confortos para cobrar dos outros aquilo que lhes escapa. Como todo desejo controlado, extrapola para todos os lados, impondo um forte teor de ruptura ao corpo e impulso para, a partir daí, romper toda e qualquer regra. Um livro que faz par com outra obra de Assis Brasil, Deus, o Sol, Shakespeare, que incorpora o melhor dos traços de uma contracultura, chegando a roçar de leve com a cultura beat americana e os poemas mais urgentes de Pasolini.