A julgar por esse título presunçoso, você poderia esperar um enxuto ensaio sobre a condição do silenciamento feminino na obra A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Esse romance publicado em 1964 que, além de ser reconhecido como um dos maiores escritos em literatura brasileira, é também um exercício de escritura e de leitura cuja experiência se define pela vivência.
É, sim, possível falar do silenciamento da narradora G.H., aquela cuja história se desenrola numa constante sublimação entre as fronteiras mais tradicionais da narrativa literária. Lispector e sua obra, como se sabe, não é fonte primordial de uma convulsão estética na história literária. A característica pela qual lembramos dela, o fluxo de consciência, já poderia ser reconhecido em autores anglófonos décadas antes, por exemplo. Clarice não se mostrou nem um pouco resistente a essas correntes de transgressão do cânone e de dissolução das “verdades” sobre o texto literário. Ao contrário: assume uma vigorosa intenção de que se escrever o que se pode e se quer.
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.
A hora da estrela
De certa forma, pode-se afirmar que a metalinguagem foi um mote da arte moderna que ainda não terminou de infernizar. É um mote do qual partiram muitos escritores e poetas nos últimos tempos. E escritores e poetas respiram a linguagem mais infernal de todas: a verbal. Aquela cuja condição ambivalente, de expressar uma coisa e não outra, não se esmaga sequer com as mais cuidadosas modalizações. Na condição de Clarice Lispector, uma mulher, no entanto, esse motivo que se apresenta “literário” pode também indicar outros caminhos de significação.
Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector, foi uma escritora ucraniana-brasileira que cresceu em Recife. Uma mulher que publicou seu primeiro livro aos 22 anos (Perto do coração selvagem), recebendo da crítica uma entusiasmada resposta. Salvo em certos casos, como o do crítico Álvaro Lins. Lins disse que a autora não soube devidamente agir como um escritor, porque esse deve coloca “toda a sua personalidade na obra, contudo nela se diluindo de tal modo que o espectador só vê o objeto e não o homem”.
É evidente que no contexto de sua publicação, as críticas de Perto do coração selvagem não desconsiderariam o gênero da autora. Não somente no mundo havia muito o que ser desconstruído de uma sociedade patriarcal, como, no Brasil, o número de mulheres que escreviam e publicavam era mínimo. Apesar de despontarem nomes como o de Cecília Meireles, a produção literária feminina se via encarcerada nas expectativas de algo lírico, da autoria de uma “poetisa”. Clarice expandiu as expectativas enquanto romancista, apresentando uma narrativa cuja ausência de distanciamento entre autor e objeto seria considerada uma das suas maiores virtudes. Regina Pontieri, em seu ensaio, Uma poética do olhar, postula que a narrativa de Clarice é de um algo e de um como que não se desassociam.
Essa tentativa no entanto sempre culminaria na percepção de que enunciar, expressar, tem uma limitação. Na tarefa incessante de contemplar todo o sentido que um personagem-narrador apreende do mundo, percebe-se a falta de uma linguagem que o alcance de forma íntegra. No fim, o horizonte utópico de quem se atreve dizer.
A paixão segundo G.H., um dos seus maiores romances, é extremamente significativo desse problema, que sempre acompanhamos em Clarice. A paixão mais se assemelha a um ensaio filosófico sobre o labirinto da linguagem: essa estrutura que nos precede e define as formas da nossa enunciação. Mas G.H., nossa narradora-personagem, se vê diante de um acontecimento tão avassalador que não definha seu ímpeto de desafiar as paredes do labirinto:
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser – se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
A paixão segundo G.H.
O texto de Clarice se debruça na constante vontade de exprimir uma consciência que não pode ser expressa nos moldes comuns da “escrevência” prosaica. As tradições da prosa, portanto, tiveram que se transformar para que a escritora caiba na literatura.
Essa narrativa tão fidedigna ao aqui-agora, ao fluxo da consciência, não se resigna tão facilmente de ambicionar, por meio da palavra e de seu caráter representativo, exprimir aquilo que não tem forma. O que não está facilmente dado pelos discursos, principalmente no que se referem a uma experiência quase mística como a de G.H. Símbolos tradicionalmente estabelecidos pelo cristianismo e pela intelectualidade ocidental não parecem dar conta do empreendimento dessa narradora, que se engaja em esvaziar o significado das coisas – tal como ocorre com ela mesma – para conquistar uma consciência do Nada.
Se a cristandade espera que ela veja revelações místicas em pássaros belos, G.H. as vê numa barata. Se a intelectualidade científica, fiel à descrição de um objeto pela distância, espera que G.H. a relate como quem persegue uma verdade inabalável, a narradora-personagem nos permite conhecer um objeto por uma mediação corpórea, sensível e crítica das bases sólidas – como uma casa solta no ar.
Assim como em criança, tive então a noção precisa de que estava inteiramente sozinha numa casa, e que a casa era alta e solta no ar, e que esta casa tinha baratas invisíveis.
A paixão segundo G.H.
O que G.H. realiza primordialmente não é cumprir um projeto estético-filosófico. Não é atar pontas soltas, muito menos “atar duas pontas da vida” como o Dom Casmurro, mas nos locomover por uma experiência tão absurda quanto íntima de certos aspectos da vivência como ser de linguagem.
Mas apesar de tudo isso, a despeito de todas essas enumerações teoricamente embasadas em estudos literários, urge que se fale dessa Paixão como experiência. Se essa experiência é estética, mística, intelectual ou de linguagem, fica a critério das paredes dos nossos próprios labirintos.
Quando desenvolvi esses traços sobre o romance de Clarice para o meu trabalho de graduação, estava também atravessada pela minha alegria difícil de lidar com essa narrativa. Agora com o tempo se alojando mais pesado entre o momento da minha leitura e o agora, retomo à escrita de Clarice e identifico minha própria escrita acadêmica seguindo a jornada de descoberta e desconhecimento de G.H.
A mim, por exemplo, o personagem G. H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.
“A possíveis leitores”, dedicatória de A paixão segundo G.H.
É como se a autora tivesse instituído um novo “Caminho do Herói” e eu acompanhasse os passos na impulsividade de quem está perdida. Comecei (ou começamos) com o grande ímpeto desse saber (“Estou procurando, estou procurando”), nos baseamos em outras vozes para definir o que queremos (sejam acadêmicos, sejam os demais seres humanos), caminhamos aos confins da nossa existência (“o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele”), matamos baratas para preservar uma vida asséptica e nos vemos no horror “pior descoberta foi a de que o mundo não é humano, e de que não somos humanos”.
Mesmo com vontade de deixar o trabalho, persisti (ou persistimos) em entender mais alguma coisa, a dar forma e significado ao caminho apesar das pontas soltas. Ao finalizar o meu trabalho no reconhecimento da minha própria linguagem fragmentária, recorro às palavras finais de G.H. – “E eu não entendo o que digo. E então adoro”. Muito além das observações teóricas que se pretende fazer sobre esse romance, lembro que a leitura de G.H. nos convoca muito mais presentemente a aderir à realidade da narrativa. Trata-se de uma atenção que não é tão lógica ou mecânica como se imagina, mas de uma atenção empática o suficiente para se mergulhar de tal forma no universo desse Outro. Dessa G.H. Dessa Clarice.
Assim como revelações divinas e conhecimentos não têm a assepsia que esperamos, estamos diante de um texto sujo por atravancamentos e fluidez com a linguagem, sujo de identificações e desidentificações com o real, sujo de palavras retificadas incansavelmente para exprimir o inexprimível.
Um percurso que nunca se finaliza para o leitor, assim como a memória não realmente deixa o corpo. Hoje, o sentido que confiro aos meus ditos sobre A paixão não aguenta mais seguir os censores, como os de que fala Virginia Woolf em Um teto todo seu: vozes que habitam o terreno fértil do nosso corpo e que nos pedem para não pisar no gramado ou não entrar numa biblioteca, vozes que limitam o pensar livre e fértil sobre a realidade. E não falo somente de homens, assim como não falo somente do silêncio das mulheres. Falo do sentido de agora, que só suporta o que atravessa membranas e que não pede licença – ou papel – para existir.
Porque a realidade das nossas palavras proferidas, da consciência dos nossos labirintos, é a única realidade realmente fértil. Fértil para leitores que se veem na história de G.H., aquela que transgrediu o silêncio até se apropriar dele.
Imagem: capa de Clarice Lispector: complete stories