[Publicado pela autora em Obvious]
Quando os anos se passarem e olharmos para Cecília Meireles com olhos de quem mira uma autora de séculos atrás, espero que seu nome já esteja consolidado como sinônimo de grandeza. Assim, nossos descendentes poderão dissertar sobre a cecília das letras do artista tal, a cecília do mar e do céu, a cecília de todas as coisas que merecem essa atribuição – ter a cecília de Cecília. No momento, atribuo a letra maiúscula ao seu primeiro nome porque nem todos os viventes tiveram contato com o Romanceiro da Inconfidência (ainda). Contudo, creio que quando o fizerem, podemos, sim, fazer de Cecília um dos substantivos mais ricos de nossa língua.
Nos primórdios da literatura na Península Ibérica, chamavam-se “romances” as narrativas em prosa ou verso com a finalidade de serem cantadas e, portanto, comoverem. Os romanceiros, por sua vez, eram coletâneas desse gênero narrativo-dramático, que compunham a tradição popular oral da época e inseriam-se no cotidiano da população não letrada. Considerando a oralidade dessa prática, destacam-se dos poemas seu lirismo e uma narrativa que escassamente pontua seu espaço e tempo; os fatos apresentam-se sem contexto e seus personagens, muitas vezes, não têm nome – características que intentam facilitar a aproximação do ouvinte-leitor com a história.
Publicado em 1953, o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, apresenta mais de 300 páginas recheadas de versos paralelos, rimas, evocações, lamentos, e outros aspectos característicos da literatura medieval – que, por sua vez, não deixam de manifestar a própria personalidade poética da autora. Apesar de oriunda da segunda geração Modernista, aquela que se ateve à temática social e histórica, a poesia de Cecília Meireles foi moldada por diferentes manifestações literárias, fazendo com que seus trabalhos possam ser considerados Simbolistas, Classicistas, Parnasianos ou, ainda, Românticos.
Em virtude disso, a poetisa, jornalista e educadora apresenta obra ornada por diferentes olhares – destacando-se, dessa forma, seu Romanceiro da Inconfidência, uma coletânea de poemas onde a autora espia a história de Minas Gerais entre os séculos XVII e XVIII, priorizando a Conjuração Mineira e seus personagens, contudo, sem deixar de inserir outras figuras que compuseram o cenário da capitania mineira durante o ciclo do ouro, como Chica da Silva e seu marido João Fernandes de Oliveira, Conde de Valadares e Chico Rei.
Fruto de uma pesquisa de quase uma década, o Romanceiro evidencia a atenção e a delicadeza de Cecília com os eventos ocorridos em Vila Rica (atual Ouro Preto), apropriando-se das lacunas deixadas para recriá-los, confiando ao leitor os sórdidos segredos da revolução e os mais viscerais incidentes.
Divido em cinco “cenários”, e dispostos na ordem dos fatos, o Romanceiro possui 85 romances, cada qual com um personagem e tema centrais. A autora empresta sua interpretação e seu denso entendimento dos acontecimentos para pintar, juntamente com seu leitor, um quadro único da Inconfidência Mineira. Tarefa prazerosa, uma vez que sua voz lírica pouco deixa de ser compreendida – Cecília resgata palavras certeiras, toca as notas necessárias para decodificar quem lê seus versos e alcança seu objetivo: comove, torna íntimo sem nenhum encostar de pele.
Extensa, densa e exigida em vestibulares, o Romanceiro da Inconfidência é negligenciado. Como algo proveniente de pesquisas e mais pesquisas, a obra dificilmente seria a melhor escolha de leitura para aquele sábado à tarde na rede. É possível dizer que qualquer objetivo que a autora pretendia alcançar com seus poemas não será sem a dedicação análoga de seu leitor. Ele se deparará com nomes desconhecidos e eventos aleatórios caso decida pular de romance em romance sem conhecimento prévio desses. Contudo, ser capaz de decodificar a obra com seu próprio esforço, através da pesquisa individual, traze-nos de volta ao século passado, quando a autora mesma procurava sintetizar um capítulo da história como apenas a poesia consegue. É como se houvéssemos escrito juntos.
A impressão que pode ser desfrutada é a de que a autora confundiu seus próprios ofícios formais. Mais fortemente, compreendemos sua dedicação lírica de poetisa no viés metafísico da história que narra. Por outro lado, a atenção jornalística com os reais aspectos da Inconfidência (que transcende o contexto político e social para influenciar a literatura brasileira, por meio do movimento árcade), principalmente com seus nomes, é um mágico complemento – finalizando, ainda, com a preocupação didática de estimular seu leitor, seja por meio da repetição de versos, pela musicalidade ou por nomes desconhecidos, que não se contentará com a obra feita e procurará outras informações. Dessa forma, criando outras narrativas em seu próprio universo.
Uma jornalista, uma professora e uma poetisa no corpo de quem dispensa distinções entre as três ocupações: todas engrandecem o leitor-aluno-ouvinte-receptor com o curioso impulso do desconhecido, de tempos longínquos que podem se tornar íntimos com as palavras certas. Tiradentes deixa de ser suas nomenclaturas, deixa de ser o “mártir brasileiro” e “herói nacional” para ser um simples alferes que, com seus ideais utópicos de liberdade, era ridicularizado por tropeiros (como mostram os romances XXX e XXXI). Tomás Antônio Gonzaga (“o pastor”), Cláudio Manoel da Costa (“o embuçado”), Padre Rolim (“sete pecados consigo/ sorridente carregava”), Francisco Antônio (“Tão gordo, tão gordo/ que vale por quatro”) e Vitoriano Gonçalves Veloso (o único ex-escravo inconfidente) são alguns dos inconfidentes que ganham contornos e cores mais vívidas com as pinceladas de Cecília Meireles na tela de seu Romanceiro. Há, porém, espaço para sua composição “ficcional”, com as donzelas a quem dedica romances carregados de luto e negros fadados a trabalhar nas minas que são alforriados por Chico Rei. Contudo, não há ficção quando há verossimilhança nas suas donzelas e escravos que morreram pelo ouro. Com esses personagens, a autora fala não apenas pelos inconfidentes conhecidos e desconhecidos, como eterniza aqueles que não ganharam espaço nos livros de história: pessoas que moravam em Vila Rica e arredores cuja exploração aurífera atormentou ou, ainda, martirizou.