A Filha do Meio-Quilo, de Assis Brasil, conta a história de Cota e de Parnaíba, no começo do século XX. Mulher de classe média, Cota havia sido acusada por toda a vida por ser uma pessoa que não seguia as regras e os padrões sociais, ou seja, por trabalhar, se envolver com homens e por ter uma vida sem se preocupar – e até em se vingar – da acusação dos outros. Cota, diante desta cidade do interior, diante de um rio e um cais do porto que empurra as pessoas da elite para o interior das cidades, revela-se capaz de enfrentar as acusações, entretanto, no fim da vida, precisa encarar a acusação de ter assassinado seu primeiro marido, Tomás. O livro, parte da Tetralogia Piauiense em que Assis Brasil gira em torno de sua cidade, a Parnaíba, também conta a história desta cidade, através da vida das pessoas que permeiam a personagem de Cota: se Cota é o centro, as demais figuras são beiras, tal como o litoral do rio Paraíba. Essas figuras são: Padre Gonçalo, Romualdo, seu segundo marido, Alzira e Lucília, suas duas enteadas. Ao fim, um intenso relato de Cota a Padre Gonçalo revela a verdade sobre sua história e sobre seu passado: um verdadeiro retrato da miséria humana diante do destino e da morte e das convenções sociais sempre frágeis e cambiantes de nossa elite média tradicionalista nacional.
O NotaTerapia separou as melhores frases do livro. Confira:
Perdão, Padre Gonçalo, se me transformei numa vingança viva, a gente cansa de não ser considerada, e cansa muito mais ainda quando não ser considerada é injustiça. Como refrear os sentimentos? (14)
Não, não podia escapar. Estavam cercados, impedidos amordaçados. A salvação da vez seria o fundo do quintal, mas ainda não pensava nele, embora Tomás já lhe declarasse seu horror ao cemitério apinhado. (18)
Não me dei por amor, não me dei por desejo. Completei-me na mulher incompleta, para justificar mais as falsas falas da cidade. Por que sempre me julguei traída e injustificada. (23)
Tenho vergonha, acho que tive vergonha por toda a vida, por ter de ser olhado morto, observado, mesmo num momento em que sei, não terei mais consciência. Mas sofro, Cota, por antecipação, por ter sofrido o que os outros teriam sofrido se contemplassem o próprio corpo velado, compreende? Mas como pode escapar um morto? Como pode um morto escapar dos vivos? Eu, por mim, não sei como escapar. (27)
Como se dedicara ao sonho. Mas tudo foi fenecendo, e se feneceu e se transformou naquela barriga e naqueles passos diferentes, era porque o sonho já nascera fraco e indeciso. (33)
Os três tinham que sorrir e sorriram, e ligeiramente se conformaram com o mundo. (43)
O corpo quente? Frio e lerdo, sem expressão alguma. Oh, como era duro estudar balé sem um amor correspondido. (50)
A existência do pai era aquela barraca no mercado; magro, pequenino, muito mais magro e pequenino do que um homem normal.
– Lá vai a filha do meio-quilo. (63)
Mas olhava para o rapaz como se visse um abacate encantado, que falava e que voava. Os olhos estavam ali, não vermelhos de desespero ou ódio, ou farra ou doença, mas mansos vermelhos inquietos, à procura de alguma coisa, de um ponto. (68)
Calma, aparentemente triste, vendendo metódica a mercadora, intrigava os fiscais gratuitos de sua vida. (71)
E as pessoas se afirmam também sonhando coisas concretas. (85)
Ao conseguir vencer outros meninos, naquelas disputas diárias, sentia o mundo sob seus pés, e mais do que em qualquer outro momento eles lhe apareciam como concorrentes, que precisavam ser vencidos, QUE PRECISAVAM SER VENCIDOS. (86)
Venceu-me pela ternura. (97)
Não me julguem pelo que os outros dizem de mim. (102)
Talvez ambas chegassem a compreender que o mundo não se faz sob a feição de cada um. É preciso se acomodar em seus baixos-relevos. (104)
Não, mais uma vez acusada, sem ter cometido crime algum. Será uma repetição de todas as passagens de sua vida. Talvez daqui a cem anos sela seja canonizada: a Cotinha. (133)
eles me tiravam da condição solitária e humilde, do posto onde me encontrava, e me projetavam – só eles podiam, em Parnaíba, fazer isso por mim (144)
– Aqui só moram os ricos?
– Os ricos estão se mudando pra cá.
– Para não se misturarem.
– Ou para se esconderem. (143)
Antes de terminar meu cálice, trouxe na mão uma uva – a mais doce que já experimentei – e pôs na minha boca. (147)
Por quê?
Por que tem que ser assim?
Por que transformam a gente? (150)
Sabe, Cota, que você é a única pessoa sem máscara nessa cidade? (165)
Tomás não teve razão de se envergonhar com a morte; com a sua morte. (178)
Fonte: Edição O Cruzeiro (1966)