O que um carro de corrida mágico e engenhoso tem a ver com justiça social, corvos, a maior flor do mundo, um gato, uma andorinha e a história do jazz? Todas essas histórias viraram livros infantis para os pequeninos. Um tanto peculiares e, por vezes, obscuros ou de temáticas complexas, pelas mãos de grandes escritores. Adultos. Mas grandes também, com um peso enorme quase mágico que emana dos seus nomes quando proferidos.
Poucos imaginam que Aldous Huxley, Gertrude Stein, James Thurber, Carl Sandburg, Salman Rushdie, Ian Fleming, Langston Hughes, Jorge Amado, Clarice Lispector, José Saramago e até o diretor Tim Burton (não tem como deixar o seu livro de fora) lideram também mundos fantásticos direcionados às crianças.
Eu tenho para mim que um dos maiores desafios de se criar enredos infantis é que o autor não deve subestimar a capacidade da criança de enxergar aquilo que ele pode e deve por nas entrelinhas. O livro existe para a criança desafiar o autor, o mundo adulto com questões curiosas sobre esse próprio mundo que está começando a conhecer. Um livro infantil pode ter diversas camadas que, no decorrer do crescimento da criança, se encontram em estado de ebulição aguardando para ser reveladas. Assim, novas perspectivas e histórias podem ser encontradas em um pequenino e inocente exemplar revirado lá atrás, quando se era criança. Foi assim com O Pequeno Príncipe, por exemplo. Eu não compreendia muito bem a grandiosidade das palavras do garotinho. Foi necessário dar dois anos de intervalo para que o livro me espantasse, fazendo-me perguntar “por que eu não vi isso antes, por aqui?”.
É com essa pergunta que a lista se encaminha para entender o quão obscuro um livro infantil também pode ser. Não necessariamente esquisito por conter figuras diferentes. Mas obscuro porque traz à tona temas dos quais nem mesmo, quando adultos, tentamos falar. Não é porque foram escritos por nomes que hoje consideramos de grande reputação, mas pela ousadia desses autores em desafiar a mente da criança. A fase da infância também tem seus lados obscuros. A fragilidade dessa vida que está se formando para a criança, a qual começa a observar que está inserida num mundo cheio de gente estranha a ela é o suficiente para puxá-la ao fantástico e recriar o seu olhar. Venha conhecê-los!
Aldous Huxley
Aldous Huxley é conhecido pela sua obra icônica de 1932, Admirável Mundo Novo, uma das mais importantes reflexões já publicadas sobre o futuro e como a tecnologia está modificando a sociedade. Mas ele também era profundamente fascinado por ficção infantil. Em 1967, três anos após a morte de Huxley, Random House publicou uma edição póstuma do único livro infantil que ele escreveu. The Crows of Pearblossom (Os corvos de Pearblossom, traduzido pela editora Record) conta a história do Sr. e da Sra. Crow e o drama dos seus ovos nunca terem vingado porque eram devorados por uma serpente que vivia na base da árvore dos Crow. Após o 297º ovo devorado, os pais esperançosos decidiram matar a cobra, para isso pediram a ajuda de um amigo, Sr.Owl, quem criou dois ovos de pedra e os pintou igualmente aos ovos dos Crow. Após comê-los, a serpente sentia tanta dor que se debatia enrolando-se nos galhos, ao que Sra. Crow acrescentou alegremente “quatro famílias de 17 crianças devoradas”, usando agora a serpente como “o varal onde iriam pendurar as fraldas dos pequenos corvinhos”. Obscuro, não? Difícil não se sentir dividido entre a dor dos Crow e a vingança contra a serpente.
O volume original foi ilustrado por Barbara Cooney, mas a nova edição publicada traz o trabalho artístico de Sophie Blackall, que criou essas imagens adoráveis captando a atmosfera do enredo.
Clarice Lispector
Escritora e jornalista com uma obra vasta que permeia os dramas humanos com uma profundidade não só perspicaz, mas com uma conexão quase íntima com o leitor, Clarice Lispector também escreveu cinco livros infantis: O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, Como nasceram as estrelas e Quase de verdade.Neles, a importância da natureza e os animais como protagonista ganham vozes para incitar a relação da criança com o mundo, num olhar mais atento e respeitoso pela natureza. Quase de verdade, escrito em 1978, conta com Ulisses, cachorrinho de Clarice, como protagonista, dialogando com a autora, que se posiciona como sua ouvinte. Como nasceram as estrelas apresenta lendas brasileiras e, de forma poética, mostra o histórico cultural, que muitas vezes esquecemos, à criança que está nesse processo encantador de descoberta.
José Saramago
Ele não poderia faltar numa lista de livros infantis. Conhecido por inúmeras obras como Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento e O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago uma vez teve uma ideia para um livro infantil que desejava ser “a mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas”. Foi assim que surgiu A maior flor do mundo, que conta a história sobre um menino que faz nascer a maior flor do mundo. “Ele passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos”. Essa é vista como a moral da história, para o autor, e não é difícil tomá-la para si sendo adulto ou criança. A saída de casa, a autonomia, acaba por ser essa flor que a gente carrega, maior do que nossos limites e importante justamente por essa carga que ela tem.
Jorge Amado
O gato malhado e a andorinha sinhá, obra do querido Jorge Amado (Capitães da Areia; Gabriela, Cravo e Canela) já foi adaptada ao teatro e ao ballet inúmeras vezes, mas o livro ilustrado pelos traços memoráveis do Carybé é um daqueles exemplares que eu guardo com muito carinho, numa edição velhinha de sebo que comprei quando tinha uns 11 anos de idade depois de ficar fascinada pela peça que fui assistir com a escola. Jorge Amado tem esse talento, de nos fazer rememorar fatos adormecidos. Gato Malhado não tinha uma boa fama entre os animais. Até que ele notou que só a Andorinha Sinhá não tinha receio de se aproximar dele. Assim, nasce um dos amores mais adoráveis e impossíveis da literatura infantil, entre personagens tão diferentes quanto Romeu e Julieta, tirando o fato de que deveriam ser o predador e a presa. Jorge Amado certa vez escutou essa história numa trova do poeta Estêvão da Escuna, que costumava recitar no Mercado das Sete Portas, em Salvador. E ela virou esse presente em forma de prosa poética para o filho do autor, João Jorge, e para inúmeras crianças que aprenderam a gostar de ler por meio dessa obra memorável.
Gertrude Stein
Escritora, poetisa e colecionadora de arte, Gertrude Stein é uma das mais admiradas e citadas no começo do século XX. A autora criou o livro The World is Round, publicado em 1938 à convite da Young Scott Books. Stein pediu que as páginas fossem rosa, a letra fosse azul e que o trabalho de arte ficasse para Francis Rose. Só esse único pedido a editora não conseguiu cumprir, solicitando que a autora escolhesse entre os ilustradores já contratados. Relutantemente, ela escolheu Clement Hurd, ilustrador que havia surgido somente naquele ano. The World is Round foi eventualmente publicado, apresentando uma mistura de prosa e poesia, com uma ilustração em cada capítulo. A personagem do livro, Rose, se questiona quem ela é, se ela ainda poderia ser Rose se não carregasse o seu nome próprio. Com essa dúvida, ela sai pelo mundo numa busca por si mesma. Toda criança já se questionou onde ela cabia no próprio nome. Por isso, a história é tão próxima. O tema se mescla aos dramas de qualquer adulto também e a obra infantil traz um pouco da carga modernista de Stein.
Ian Fleming
Ian Fleming é reconhecido como o criador de uma das obras mais populares: a série de livros sobre James Bond. Alguns anos antes do aniversário de seu filho Caspar em 1952, Fleming decidiu escrever um livro infantil a ele, mas Chitty Chitty Bang Bang não viu a luz do dia até 1964, quando Fleming morreu. A obra conta a história da família Potts e da figura paterna de Caractacus, quem usa o dinheiro da invenção de um doce especial para comprar e consertar um único e mágico carro de corrida, que a família apelidou afetuosamente de Chitty Chitty Bang Bang. A inspiração de Fleming veio de uma série de motores aeronáuticos feitos para a corrida do piloto e engenheiro britânico Louis Zborowski nos anos 1920, o qual o primeiro motor de seis cilindros da Maybach foi nomeado Chitty Chitty Bang Bang.
O livro original foi ilustrado em preto e branco por John Burningham e foi adaptado pela Disney em 1968 para um filme homônimo com o ator Dick Van Dyke.
Langston Hughes
Poeta, ativista social, novelista, dramaturgo e colunista. Todas essas qualificações se dirigem a Langston Hughes, considerado um dos pais da “jazz poetry”, uma forma literária que emergiu nos anos 20 e eventualmente se tornou a fundação do hip-hop moderno. Em 1954, com 42 anos, Hughes decidiu colocar todo o seu amor pelo jazz na forma de um livro infantil que introduzia as crianças às várias expressões musicais que ele tanto admirava. The First Book of Jazz nasceu, se tornando o primeiro livro infantil sobre música americana, e até hoje é considerado o melhor. Hughes colocou cada aspecto notável do jazz, da evolução até a era mais celebrada e icônica, para também os sub-gêneros geográficos espalhados pelos EUA, e destacou a participação essencial dos músicos afro-americanos na consolidação do gênero. Hughes até escreveu sobre a técnica do jazz – ritmo, percussão, improvisação, blue notes, harmonia – com uma eloquência tão notável que em vez de sobrecarregar a criança, leva a ela a vontade de jogar e brincar com a música.
James Thurber
Entre 1940 e 1950, o celebrado escritor e cartunista Americano James Thurber, mais conhecido pelas suas contribuições ao The New Yorker, criou livros que reuniam contos de fadas, alguns ilustrados pelo aclamado artista e cartunista político franco-americano Marc Simont. O mais famoso deles foi The 13 Clocks, um conto fantástico escrito por Thurber em Bermuda em 1950. Conta a história de um misterioso príncipe que precisa completar um desafio impossível para libertar a Princesa Saralinda, das garras do terrível Duque do Castelo Coffin. O livro excêntrico é constituído pelo jogo de palavras poderoso de Thurber e escrito num estilo unicamente encadeado, criando um fascinante objeto de apreciação linguística e tratamento estrutural dos amantes da língua de todas as idades.
Veja aqui uma animação do livro narrada por Neil Gaiman.
Carl Sandburg
Em 1922, duas décadas antes do primeiro dos três prêmios Pulitzer, o poeta Carl Sandburg escreveu um livro infantil chamado Rootabaga Stories para suas três filhas, Margaret, Janet e Helga, apelidadas de Spink, Skabootch e Swipes, respectivamente. Os apelidos ocupam repetidamente alguns dos volumes humorados de pequenas histórias. O livro surgiu pelo desejo de Sandburg em criar até então os inexistentes contos de fada americanos, o que ele viu como chance de substituir o imaginário dos contos europeus pelo Meio-Oeste americano, que ele chamou de “o país Rootabaga”, substituindo fazendas e trens por castelos e cavaleiros. Fantásticas e cheias de ideias criativas, as histórias capturam a visão romântica de Sandburg e também a sua perspectiva esperançosa sobre a infância.
Salman Rushdie
O novelista índio-britânico Salman Rushdie esteve envolvido em polêmicas pela obra The Satanic Verses, acusada de blasfêmia e humor inadequado à religião pelos críticos, o autor é ainda constantemente lembrado pelo seu talento na escrita. Em 1990, ele direcionou seu talento à literatura infantil com a publicação de Haroun and the Sea of Stories, uma alegoria fantasmagórica sobre justiça e diversas marcas sociais, particularmente na Índia, explorada pelo jovem protagonista Haroun, e o pai dele, um contador de histórias. O livro recebeu o prêmio Writer’s Guild Award for Best Children’s Book naquele ano. Um dos tratamentos inesperados da obra é a quebra de significados e o simbolismo de uma ampla lista de nomes de personagens, o que destaca a linguística e semântica intrigantes presentes na cultura indiana.
Vinte anos depois, o autor publicou seu segundo livro infantil, Luka and the fire of life: a novel.
BÔNUS: Tim Burton
Não poderia deixá-lo de fora dessa lista sendo que Tim Burton criou uma obra espirituosa, delicada e muito criativa para crianças. O diretor de filmes como Edward Mãos-de-Tesoura, A Noiva Cadáver e Alice no País das Maravilhas e o ótimo curta Vincent pontua a sua estética com excelência na obra O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra (traduzida pela editora Girafinha). A edição conta com ilustrações de próprio punho do autor e escrito em forma de versos. Seus poemas curtos encapsulam personagens – menino e menina – que possuem alguma característica considerada bizarra aos olhos dos outros. Juntos, povoam um mesmo mundo, provavelmente o mesmo campo burtoniano que já se criou com autonomia no nosso imaginário. Os poemas são curtos e deixam claro o humor negro característico do diretor, com uma leveza que dificilmente se consegue obter com tão poucas palavras.
“Menino Palito gostava da Garota Fósforo.
Gostava era pouco:
Sua figura esbelta
O deixava louco.
Mas como acender entre eles
A chama da paixão? Simples.
Foi só seguir seu desejo à risca,
Que ele saiu queimando faísca”.
Fontes.