Muito se discute para que serve a literatura. Para se expressar? Para contar histórias? Para respirar? Para criar vida? Para destruí-la? Para existir de uma forma nova? Para não existir? Ou qualquer outro motivo próprio que não se deixa revelar antes que ela seja lida e relida e escrita e reescrita, até que suas estradas sejam percorridas de um modo constante na vida do leitor/escritor, e ainda assim talvez faltem explicações para ela. Para responder às questões mais essenciais da vida humana, como o motivo de viver e o de fazer ou ler literatura (os quais talvez alguém um dia descubra serem os mesmos?)? São tantas as questões levantadas pela vida e pela literatura que acabei de usar dois pontos de interrogação seguidos separados por parênteses e ainda assim não param de surgir perguntas.
Talvez a literatura sirva não para responder nada, mas para questionar. Ou talvez outras pessoas que mergulharam fundo nos oceanos literários possam responder a essas perguntas acima (ou levantar mais questões?) com seus textos. Por isso, listei abaixo alguns dos mais marcantes contos que li nos últimos anos, os quais são capazes de mudar sua visão da realidade e da literatura, pois, como veremos em muitos desses contos, ambas estão tão conectadas quanto artérias, sangue e coração e é difícil saber, no caso das letras, qual bombeia e nutre qual deles. Nem todos os contos são sobre literatura e/ou metalinguagem, mas todos utilizam as palavras de forma a analisar a humanidade e seus questionamentos de maneiras únicas e de grande impacto. São daquelas leituras que, não sei se vocês também tem isso, mas que dão vontade de virar letras e de ser aquele texto, pois fazem sentido demais. Textos cujas palavras parecem ter um coração real e bombear sangue novo para a mente do leitor. Claro que a lista poderia ser infinita e que faltam ainda muitos contos marcantes nela, portanto, se achar que falta algum conto, comente.
Veja abaixo a lista e boa viagem pelo mundo da literatura. Leia e releia os contos abaixo quantas vezes você quiser (e é bem provável que irá querer relê-los algumas boas vezes!).
Demônio da Perversidade – Edgar Allan Poe
Foi difícil demais escolher um só conto de Edgar Allan Por para incluir nesta lista. Portanto, decidi incluir dois: O Demônio da Perversidade e O Coração Denunciador. O primeiro deles é um dos contos mais teóricos da lista e trata sobre algo muito peculiar: o instinto humano. Não um instinto qualquer. Aquele instinto único e contrário à evolução, capaz de fazer com que aquele o qual fique à beira de um abismo contemple precipitar-se deste. O instinto de auto-destruição pelo simples prazer do proibido, do fazer aquilo que fará mal ao próprio feitor, mas o qual não resiste e comete o ato mesmo assim, exatamente porque sabe que isso o fará mal. As palavras de Poe ao descrever o que ele chama de “Impo of the perverse”, que também pode ser traduzido como “instinto do perverso” de forma mais literal, são tão fortes que convencem o leitor sobre tal instinto. Não leia este conto na beira de um abismo e pense duas vezes sobre suas ações após lê-lo. Ler Poe é, antes de tudo, saber apreciar com moderação o conteúdo dos textos.
O coração denunciador – Edgar Allan Poe
O segundo conto de Poe citado aqui (poderia citar praticamente todos dele, mas há outros autores maravilhosos a serem lidos também) é O coração denunciador ou delatador, ou literalmente O coração que conta um conto, pois seu nome original é The Tell-tale heart. Esta narrativa é feita do ponto de vista de um homem que jura de pés juntos não estar louco, mas ele não para de ouvir os batimentos cardíacos de um homem morto, o qual ele mesmo acabara de matar, segundo ele, por motivo nenhum. Quer dizer, talvez por causa do olho, o velho tinha um olho coberto por uma camada estranha (provavelmente ele só tinha catarata) e isso incomodava o moço. Aí uma noite, ele metodicamente abriu a porta do quarto, matou o velho, esquartejou o corpo e, quando a polícia aparece, ele começa a ouvir o coração batendo. Nem é louco nada, por que seria? Ou será que é? Alguém pode mesmo matar outro sem motivos? Talvez só por que sabe que não devia? Leia o conto e tire suas próprias conclusões.
Duda Falcão – Devoradores de Narrativas
Presente nos livros Tu, Frankenstein II e também na segunda antologia solo do autor gaúcho, Treze, este conto nos narra os eventos ocorridos a um jovem que, ao trabalhar como segurança em uma biblioteca, tem uma extremamente peculiar experiência em relação às palavras e suas leituras, algo que o transforma por completo, dando um total novo sentido ao que entendemos pelo ato de ler e escrever. Se contarmos aqui qual é a experiência, arruinaríamos a surpresa do conto, mas com certeza é uma leitura marcante. A frase final do conto é de forte impacto e merece ser citada e relida: “assim como os livros, cada pessoa tem sua própria história, e é saborosa demais para ser desprezada”.
Duda Falcão – A Pena do Corvo
Presente nos livros Autores Fantásticos e também na primeira antologia solo do escritor gaúcho, Mausoléu, este conto traz a história de um personagem obcecado por Edgar Allan Por a níveis absurdos. Elecompra um artefato chamado pena do corvo, com a qual começa a escrever contos como o próprio Edgar Allan Poe. Conforme a narrativa se desenvolve, a obsessão do personagem cresce. Se você é fã de Poe, talvez se identifique um pouco com a história. A narrativa é bastante breve e escrita em um estilo leve e dinâmico, cuja leitura flui muito rápido, então dá pra ler em poucos minutos (ou passar mais de uma hora relendo, porque vale a pena!). O conto foi inclusive disponibilizado para leitura online neste site aqui , mas recomendamos também adquirir a obra Mausoléu, onde além deste conto, você encontra muitos outros contos fantásticos acompanhados de uma bela arte gráfica que vai merecer lugar de destaque na sua estante.
Fiódor Dostoiévski – O sonho de um homem ridículo
Neste conto, o mestre da literatura russa nos apresenta um personagem completamente desiludido com tudo, indiferente ao mundo. Indiferente ao ponto de querer se matar, mas nunca chegar a realizar tal ato porque fazê-lo em qualquer noite pareceria um ato por demais aleatório e ele queria esperar algo que o motivasse a tal, algo que marcasse sua última noite. Até que, certa noite, o encontro com uma criança perdida e a visão de uma estrela solitária no céu lhe inspira a por um buraco em sua cabeça, como ele mesmo assim se refere ao tiro. Ele decide que aquela noite será sua última. Chega em casa e, ao pegar a arma, adormece com esta na mão, e seu sonho o inspira a uma vida melhor. O sonho o mostra um monte puro e inocente, uma utopia completa. Leitura essencial e inspiradora para tempos difíceis e também tempos menos difíceis.
Gustavo Melo Czekster – Os que se arremessam
Conto presente no segundo e marcante livro do escritor gaúcho, Não há amanhã, lançado em março deste ano. Nesta narrativa psicológica e altamente introspectiva, Czekster nos apresenta uma perspectiva incrível do universo: o que é, de fato, se arremessar? Se atirar de uma ponte? Se jogar em possibilidades arriscadas sem ter certeza do futuro? Viver sem saber se haverá amanhã, sem se importar com conseqüências? Seu protagonista reflete em tal fato de maneiras que chegam a lembrar um pouco até mesmo o conto O Demônio da Perversidade, de Poe, pois o narrador do conto comenta sobre como viver no ápice da vida é uma forma de vivê-la ao máximo. Se arremessar para se tornar eterno. Conto extremamente cativante e original, que merece ser relido com freqüência.
Gustavo Melo Czekster – Passionalidade dos Crimes
O que é um texto? Para que servem eles? O protagonista deste conto diz que o escreve (sim, o protagonista diz ser o próprio autor, Czekster usa muita metalinguagem, um dos aspectos que o torna um autor incrível) para se vingar de uma pessoa, para matar. Só essa premissa já é o suficiente para tornar o conto maravilhoso, some isso à forma como foi desenvolvido e também ao estilo do escritor e temos umas das obras primas contemporâneas em mãos.
Marina Franconeti – Na terra de abismos há outros
Só pelo estilo único e esplêndido de Franconeti, o conto já é muito bom. A jovem escritora paulista escreve de uma forma sensível e lírica, com linhas que mais soam como versos, e neste conto, nos apresenta uma perspectiva cheia de esperança da humanidade. O protagonista desta narrativa é um jovem que anda um tanto sem ânimo com sua vida, seguindo uma rotina entediante, tudo o que ele vê são abismos. Até que ele encontra sentido para tudo isso em conexões com outras pessoas. Conto inspirador e marcante. Você pode ler o conto de graça na Amazon.
Guy de Maupassant – O Horla
O autor francês, Maupassant, escreveu diversos contos que vão desde o realismo até o fantástico, que é o tema desta narrativa chamada O Horla. Um dos contos mais influentes da literatura fantástica, O Horla nos traz um protagonista que descobre a presença de um ser invisível em sua casa. O conto tem duas versões, uma mais resumida, e uma em forma de diário, na qual podemos acompanhar tudo o que acontece ao protagonista desde seu primeiro encontra com o ser invisível o qual ele chama de Horla. Leitura imperdível.
Jorge Luis Borges – O livro de Areia
Neste conto, o famoso escritor argentino nos apresenta um livro infinito. Isso mesmo, exatamente isso. A história nos mostra um personagem o qual, em uma noite, se depara com um vendedor de livros, a maioria bíblias, e tal vendedor o oferece um livro infinito, o qual ele chama de Livro de Areia, pois nem o livro nem a areia tem início nem fim. E isso faz sentido porque este é um livro cujas páginas não terminam jamais, suas enumerações são aleatórias é impossível encontrar o início ou final do livro. O protagonista acaba ficando completamente obcecado com o livro.
Jorge Luis Borges – A Biblioteca de Babel
Borges definitivamente se inspirava em livros e bibliotecas para escrever seus contos. Outra de suas mais inesquecíveis e icônicas obras é A Biblioteca de Babel, em que o autor equipara o universo ao lugar chamado de Biblioteca de Babel, descrevendo-a como uma biblioteca possivelmente infinita. É ou não é um paraíso para leitores? Agora imagine este lugar repleto de livros de areia e temos infinitos multiplicados no universo de Borges.
Santiago Dabove – Ser Pó
Com uma escrita cativante, dotado um estilo dinâmico e de vocabulário rico, esta narrativa nos apresenta uma peculiar perspectiva da morte ou do que pode ser interpretado como um sonho surreal que antecede a morte do personagem. Sem dar muitos spoilers, podemos dizer resumidamente que o protagonista acredita estar se transformando em vegetal, após sofrer uma queda de cavalo e ter uma crise de imobilidade. O fato de o conto ser narrado em primeira pessoa permite ao leitor ter acesso aos mais inimagináveis pensamentos que ocorrem na mente deste personagem em tal situação. Este conto está incluso na Antologia da Literatura Fantástica organizada por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo.
Max Burbohm – Enoch Soames
Neste conto definitivamente marcante e original escrito pelo britânico Beerbohm, conhecemos um escritor e poeta um tanto sombrio chamado Enoch Soames. O jovem poeta é obcecado consigo mesmo e tudo o que ele mais quer é ser reconhecido como um grande escritor e ter seu nome na história da literatura. Até que um dia ele faz um pacto com o diabo para ir ao futuro, cem anos após o dia atual em que se passa a narrativa, para saber se ele seria conhecido após sua morte. O mais curioso ainda deste conto é o fato de o escritor, Burbohm, narrar a história do ponto de vista de um amigo do personagem principal Enoch, e Enoch diz que vê seu nome ser mencionado no conto de Burhbohm. É muita metalinguagem, de maneira que o conto quase parece não ser fictício (claro, se viagens ao futuro fossem possíveis, assim como pactos com o diabo). Este conto está incluso na Antologia da Literatura Fantástica organizada por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo.
Hermann Hesse – O Poeta
Para os poetas de plantão aí, este conto pode ser bastante inspirador. Ele nos mostra a história de um personagem cujo maior sonho é se tornar um grande poeta e compreender toda a existência em seus versos. O jovem então deixa sua família para trás, rompe com o compromisso de se casar e segue um misterioso mestre que aparece para ele. Durante muitos anos, ele observa o mestre e aprende com ele. O estilo narrativo de Hesse é encantador, seu lirismo e estilo delicado e sensível de apresentar o mundo torna sua escrita ainda mais cativante, além de o tema já ser ótimo.
Hermann Hesse – Sonho de uma Flauta
Outro conto inesquecível de Hesse é O Sonho de Uma Flauta, o conto que entitula o livro de contos no qual se encontra esta narrativa, O Poeta e muitos outros contos. Esta lírica obra de Hesse nos mostra um jovem que adora cantar e, após ganhar uma flauta de seu pai, entra em um barco junto a um senhor que conduz o barco. Os dois cantam sobre tudo juntos no barco, e com o tempo o jovem nota que suas canções pareciam inocentes demais em comparação às do senhor que o guia e isso vai fazendo com que ele mesmo também mude e cresça. Em resumo, o conto é uma bela metáfora para o amadurecimento.