Primeiro, e antes que se rufem os tambores e se ergam as tochas e os garfos de palha, gostaria de esclarecer que qualquer tipo de tentativa de politização extrema da arte, como qualificar um filme bom ou ruim por isso, tendencia a ter caráter nocivo para a própria obra de arte.
No entanto, o tema pode sim, ser reconhecido em alguns momentos, piadas, e até pelo fato de ela ser mulher e dominar um lugar que até então só era ocupado por homens – e não se importar e não aceitar se enquadrar no que o status do momento dizia –, no entanto, o filme não se trata somente disso. Essa obra é muito maior que uma questão político-social. E não digo isso com intenção de reduzir as questões político-sociais que podem se abordar, mas de mostrar que aplicar somente esse critério à leitura da obra é reduzir o seu valor. Então, assim sendo, leitor, vamos ao que interessa.
Mulher Maravilha para além de toda questão do momento atual, fala sobre os dramas de cada um; a nossa luta diária para melhorar, além de nossas imperfeições e falhas, as reconhecermos e sobre como lidamos com isso. Mas, mais importante, o filme nos traz reflexões acerca do nosso valor e, ademais, se somos realmente dignos de qualquer tipo de salvação. E toda essa noção, pode ser principalmente percebido pelo viés religioso/místico adotado desde os seus primeiros momentos. Porém, leitor, peço que prossigamos com um pouco mais de calma e voltemos a esse início, para que melhor possamos estabelecer melhor essas relações.
A história, quando já em Themyscira, de prontidão nos traz a questão relacionada à criação do homem e da humanidade. E é a partir dessa introdução que se constrói todo o fio no qual essas questões se equilibram, e por meio delas que faremos, leitor, as nossas reflexões com maior profundidade – sem nos deixarmos levar ao abismo que há abaixo, é claro.
É adotado, logo de cara, e de maneira um pouco ousada, um viés religioso pela DC, que diverge do estúdio concorrente – no qual justifica sua parte mística em tecnologias –, e tal escolha não só interfere no modo de se contar a história, como também nas ações e construção de personagens. Diana realmente acredita em deuses; Ares é um deus para ela e interfere diretamente na atitude dos homens. As amazonas vivem aquilo e sabem que, muito além de uma mera história de profecia, Diana é filha de Zeus, e, mais, sabem da sua importância tanto no sucesso de sua “missão”, quanto na falha. A Srta. Prince, por sua vez, realmente acredita que tem essa missão no mundo, o que deveras se assemelha com o sentimento missionário que pessoas que mantém a religião no centro da sua vida apresentam.
Mas o grande ponto da discussão que o filme gera não está ali, na história de um “escolhido” que deve suportar o peso do mundo ou de suas escolhas apenas nas próprias costas, está relacionado, por outro lado, com a seguinte pergunta – que, inclusive, é feita em momentos cruciais do enredo –: Afinal, o homem é falho, cheio de vícios, é causador de problemas, e levando isso em conta, ele realmente merece ser salvo? Curiosamente – curiosamente devido ao seu teor religioso – esse é um questionamento que também é deveras bíblico: o homem com todas as suas falhas, não é digno dessa redenção que teve, nem da salvação que poderia ter.
E, nesse gancho, Ares atua no enredo quase como uma alegoria do diabo: para além da sua queda e revolta contra seu pai, ele sussurra no ouvido dos homens aquilo que podem fazer, ajuda-os a resolver problemas, dá-lhes oportunidades de ouro – mas tudo quanto pode ser feito, é por unicamente por conta e culpa deles, eles não perderam o livre arbítrio – apenas retomando essa leitura comparada. Inclusive, esse é um dos argumentos do vilão para que Diana unisse forças com ele e aceitasse destruir a humanidade, afinal, eles se destroem por si mesmos, eles são corruptos, estragam toda a perfeição feita pelo criador. Numa outra comparação bíblica, se assemelha novamente com o diabo que tenta Jesus a acabar com o pecado do mundo. Mas já dizia Chesterton que tem coisas que deviam ser amadas antes de ser amáveis, e essas “coisas” somos nós.
E é disso que mais fala Mulher Maravilha.
Não quero me ater unicamente a uma comparação bíblica do caso – e vocês leitores, podem perceber que a temática é universal, apesar das minhas comparações que servem apenas para auxiliar no embasamento –, porém, apresentar a vocês que essa temática do valor, de ligação com o transcendental, da redenção e salvação humana estão presentes ali, e que esse tipo de leitura metafísica, universal, de certa forma, acaba por ser suprimida diversas vezes em detrimento de um ponto de vista de uma crítica sócio-política.
Mas, voltando ao enredo, quando Diana percebe que não matou Ares ao matar o General, sua consternação é tamanha que a paralisa. Ela foi ludibriada, não consegue fazer nada e, inclusive, nessa nova percepção de que, de fato, os homens não são inerentemente bons, os culpa por toda guerra e destruição. Eles são os culpados da própria violência. No entanto, quando Steve assume a responsabilidade de também poder ser um dos que estavam errados, ele começa a mostrar parte do que é o valor humano: somos todos imperfeitos, errados; a violência, querendo ou não, está na nossa natureza humana, e ele ao admitir isso e saber que ele pode ao menos tentar fazer algo para que o mundo seja melhor – e aí, por meio desse auto-reconhecimento, passa a provar o seu valor e da humanidade. A princesa de Themyscira que antes seguia uma missão, sem compreender tanto o seu heroísmo, precisa passar por esse reconhecimento de que cada um tem a sua luta, para que, além de reconhecer a sua própria, perceba o valor da humanidade de maneira plena.
Isso inclusive, permite a ela compreender um pouco o fato de o Chefe, o índio que teve seu povo massacrado pelos ingleses, estar ajudando um inglês: não há um rancor entre eles, são inclusive amigos, que se unem para lutar e ajudar a humanidade porque sabem o imenso valor que tem apenas um homem. Ali, todo conflito relacionado à dívida histórica vai para o chão: um apoia o outro, e são todos amigos, o que se dá também para turco, que é ator que não queria estar ali, ou o atirador de elite que vê fantasmas e não consegue atirar – o passado, apesar de tê-los tornado quem são – não está mais ali, a guerra é um motivador maior para que se faça uma união para a paz. E nisso, todos fazem a sua parte para tentar acabar com esse conflito que destrói os homens – interna e externamente – e o mundo, sem se esquecer, no entanto, que cada indivíduo daqueles tem o seu próprio combate a enfrentar contra si mesmo.
Diana, ao defrontar o deus caído, quando está presa e quase sem forças, num momento de ira profunda ao ver Steve se sacrificando, consegue se livrar. Porém, ela ainda é incapaz de atingi-lo de maneira eficiente. Pela raiva e violência, somente, ela não consegue derrotar a personificação da guerra. Entretanto, somente ao se lembrar da conversa com Steve, na qual ele mostra todo seu amor à humanidade e a ela – pelo sacrifício e no ato de entregá-la o relógio – que a princesa consegue efetivamente atingir e destruir o algoz – utilizando não sua espada, mas os braceletes, que eram um aparato de defesa. Faz-se necessário lembrar, leitor, que ela consegue destruí-lo muito por conta do que ela mesma diz: é sobre aquilo que você acredita. É uma questão de fé. De fé na humanidade e em algo bom, superior.
Então, muito mais do que uma forma de anunciar o empoderamento dela, ela como heroína, e, por isso, como salvadora, mostra o seu papel de perceber que a humanidade, apesar de não ser merecedora, ao cometer um ato de amor, um ato bom, acaba fazendo valer mais que os seus erros, suas falhas ou vícios. Não que se justifiquem todas as falhas por um ato bom – o que é óbvio – ainda há de se existir justiça, mas, enquanto houver esperança e bondade, a humanidade sempre terá a chance de se redimir. A própria amazona apresenta seus conflitos internos ao tentar salvar uma humanidade que parece não querer ser salva, e, no entanto, ao se ver na sua qualidade de heroína, o faz, pois sabe ser o correto. Essa linha entre o bem e o mal, apesar de em casos apresentar-se de modo muito complexo e quase apagado, deve estar bem demarcada, pois é daí que surgem os heróis, aqueles que, mesmo em meio à escuridão ou a podridão, sabem distinguir o bem e o correto daquilo que não é.
Um breve apêndice:
Inclusive, há um tipo de exaltação que se percebe muito nos dias atuais, quando se nota grupos de pessoas que amam mais a natureza ou os animais que o próprio ser humano. Fazem campanhas contra o corte de uma árvore mas são incapazes de ajudar um mendigo, ou tem asco a gravidezes e bebês, ou à criação de filhos, enquanto defendem o nascimento de bebês panda do outro lado do mundo. A própria Diana, ao ver um bebê tem a reação espontânea que tem se apagado cada vez mais. Também, Ares leva a heroína do campo de batalha, daquele lugar destruído, que cheira à morte, para um campo belo e perfeito, onde não haveria mais homem algum para destruir a natureza e impor seu baixo valor sobre ela.
E com toda nossa pequenez, quem seríamos para cortar uma árvore ou matarmos um animal para nos alimentar? No entanto, não é essa relação, em estrito, que precisamos nos ater, leitor, caso contrário cairíamos em contradição no que concerne à politização da obra de arte. Do contrário, leitor, a máxima aqui é a mesma que tange o argumento de tamanho, feito por Lewis e Chesterton, por exemplo, com o qual demonstram que não é por sermos pequenos e vivermos nesse pálido ponto azul, por existir todo um cosmos imenso que não teríamos valor: um mundo sem humanidade mas com todas as árvores plantas e raiar de sol, de certa forma, ainda seria um mundo sem valor. E isso é expresso de maneira bem clara durante o filme. Um homem vale mais que qualquer floresta, e qualquer outra “criação”, desse mundo.
Ps: O texto não corresponde, necessariamente, à opinião da equipe do Nota Terapia.