“A pequena Marina perguntou à minha mãe: “Professora, por que é que nossas avós fizeram o sinal de cruz para o nosso trem?” Os olhos de minha mãe expressaram profunda dor. Minha mãe que vinha encorajando a todos sem descanso, correu para a plataforma do vagão e chorou em voz alta.”
Imagine ler relatos de crianças e adolescentes que tiveram a infância minada por dores, injeções de iodo, sessões intermináveis de quimioterapia, muitas delas esperando apenas que a morte chegue? Enquanto o governo não avisava os perigos da radioatividade para o população, jovens comiam hortaliças frutas e nadavam em águas contaminadas. Era primavera em Pripyat, cidade da Ucrânia onde fica a usina Vladimir Ilyich Lenin, conhecida como Usina de Chernobyl. As crianças gostavam de sair para colher bétulas. Depois do dia 26 de abril de 1986, as bétulas foram cobertas de poeira assassina. Após o acidente, e quando finalmente o governo alertou os moradores sobre o perigo da região, as pessoas não sabiam mais o que fazer. Entraram em pânico, os mais velhos, resistiram, sendo que vários deles foram encontrados mortos em suas casas, dias depois pelos “Exterminadores/Liquidadores”, que vou contar mais a frente o papel dessas pessoas que hoje em dia não são lembrados. O termo “heroísmo” está fadado a Neymar e integrantes do BBB. Espero que este texto relembre e nos devolva o conceito de heroísmo. Esta tragédia dramática levou as pessoas a pensarem mais sobre a história do país, sobre a importância da terra natal. Uma história que retrata o quão importante é a contribuição do povo ao país. Neste livro, temos o relato de 25 crianças e adolescentes que viveram com o perigo da radiação e a saudade da terra natal. Além dos depoimentos, temos fotos e ilustrações. A coletânea da edição brasileira foi retirada de “Rastro do Vento Negro”, que foi publicada na Bielorússia e de uma versão editada no Japão, e foi publicada 10 anos depois do acidente, tendo toda a renda da comercialização destinada às crianças vitimadas pela poeira radioativa do acidente. O livro foi viabilizado com a contribuição voluntária de tradutores e revisores, muitos deles, anônimos. A tradução foi feita da edição japonesa e russa, e foi possível a tradução de apenas 25 dos 100 textos que foram selecionados de 500 redações enviadas para o concurso “Chernobyl e Meu Destino”, pois foram encontradas dificuldades em achar tradutores dos idiomas, sendo que na versão russa, a presença de dialetos locais dificultava ainda mais o trabalho. Foram duas edições do livro, e sua tiragem foi de 3000 exemplares cada edição.
Em 26 de abril de 1986, o reator 4 da usina explodiu à 1 hora e 23 minutos, durante um teste, liberando na atmosfera e nos arredores, cerca de 50 milhões de curies de radionuclídeos, 400 vezes mais do que foi liberado em Hiroshima e Nagasaki, durante o lançamento da bomba nuclear em 1945. Falando em níveis de radiação, com o acidente, a escala de radioatividade nos arredores ficou entre 40 milhões de curies de Iodo 131 e cerca de 3 milhões de curies de Césio 137, além de Estrôncio 90 e Plutônio . Estas foram as principais substâncias tóxicas que ceifaram muitas vidas. Além delas, teve emissões de gases nobres, tais como Criptônio 85, Xenônio 133. O Césio 137 tem meia vida de 33 anos. Mas o que é meia vida? O termo meia-vida é o intervalo de tempo para que a substância pare de emitir metade de sua radiação. O Césio 137 espalha-se no sistema muscular e causa mutações genéticas degenerativas. O Estrôncio 90 tem meia vida de 29 anos. Foi o radioisótopo causador de leucemia, pois ele se irradia na medula óssea. Iodo 131 possui meia vida curta, cerca de oito dias, mas foi o principal causador do câncer na tireoide nas pessoas que moravam na chamada “Zona de 30 km”, região que teve o maior índice de contaminação radioativa. Cerca de setenta por cento do território da República da Bielorússia foi atingido. Segundo estimativas, cerca de 2,3 milhões de pessoas sofrem com as sequelas da contaminação radioativa, sendo 500 mil delas, crianças, isso em 1994. Na região dos 30 km, ocorreram alterações na genética de animais e plantas. Foi o maior acidente nuclear da história, tendo além de mortes e muitos feridos até hoje devido às consequências dos lançamentos de substâncias radioativas na atmosfera e solo, houve também uma considerável perda econômica.
A evacuação da maior parte da região ocorreu no dia 27 de abril de 1986, após a Suécia perceber que houve um aumento dos níveis de radiação. Até o dia 20 de julho de 1986 faleceram 28 pessoas e cerca de 30 estavam internadas em estado grave, foram vítimas da Síndrome da Radiação Aguda, que atinge cerca de metade dos indivíduos que receberam altíssimas dosagens de radiação. As vítimas desta síndrome estavam entre os bombeiros, médicos e os mineradores que trabalharam na construção de um túnel que os levava até o reator, pois teve uma ameaça de uma segunda explosão que caso ocorresse, faria com que a Europa na maior parte de seu território fosse totalmente dizimada. As doses mais baixas de radiação causaram efeitos tardios em quem as recebeu. Causa tumores malignos e deformações congênitas, sendo que as crianças foram as mais atingidas. Hoje, na região da Bielorússia, há pessoas que ainda estão em contato diariamente com a contaminação, e outras estão desabitadas, como a cidade fantasma de Pripyat e seus vilarejos, também conhecidos como aldeias. Na vila de Dronki, por exemplo, moravam seis mil habitantes que foram retirados à força. Nos locais onde estas pessoas vivem os radioisótopos ainda são ingeridos através de verduras, leite e carne. Os radioisótopos são amplamente distribuídos através da cadeia alimentar, ou seja, o vegetal absorve a substância radioativa do solo, e como servem também de alimento aos animais, a radiação propaga-se para a carne e o leite. Após o acidente de Chernobyl, o índice de câncer na tireoide entre crianças foi para 400 casos. Antes do acidente, a média era de 20 casos.
“Alguma coisa esverdeada estava grudada em nossas roupas e sapatos… Aquela cinza impregnou não somente a minha roupa, mas também penetrou no meu corpo, no meu sangue e no meu destino”
Os habitantes da região do acidente não sabiam a verdadeira proporção do acidente. A maioria continuou com suas rotinas normais, como se nada tivesse acontecido. O silêncio sobre o ocorrido era grande, e o desconforto era também, quando alguém tocava no assunto. Como em todo acidente de vasta escala, demorou, e muito, para que a população tivesse as informações sobre o que aconteceu, a verdade foi escondida junto aos escombros em brasa do reator da usina. Enquanto desconhecidos dos perigos da radiação, a população plantava flores naquela primavera, e após a chuva, as crianças que brincavam no jardim ficaram molhadas de chuva radioativa e impregnadas de cinzas. Na inocência, elas acharam que eram apenas polens. A situação poderia ter sido muito pior se tivesse ventado na noite do acidente.
“De manhã, a úmida neblina interceptava a luz do sol. Fomos à chácara com papai e preparamos a terra para a semeadura. Mais tarde o sol raiou e tomamos banho de sol com muita alegria. Tendo terminado o trabalho matutino, após o almoço toda a família foi de Moscovita para o bosque.
No dia seguinte, fomos extrair suco das bétulas brancas da floresta em Sokolóvka. Fizemos a fogueira, assamos toicinhos e tomamos o suco. Assim passamos momentos felizes e alegres. Levamos o suco para casa e o distribuímos a amigos e vizinhos. Também guardamos um pouco no porão para ser tomado durante o verão.
No dia primeiro de maio daquele ano – Dia do Trabalho – o tempo estava muito bom também. A praça ficou cheia de bandeiras vermelhas e o povo sorria alegre. Nós participamos do desfile e clamamos em frente do palanque “Hurrah”, glória ao comunismo da União Soviética.
(…) Ninguém nos avisou sobre o perigo em colher os morangos e os cogumelos do bosque durante os 2 ou 3 anos. Nós tomamos o suco das bétulas brancas de Chernobyl, comemos morangos e cogumelos contendo césio, estrôncio e plutônio, tomamos banho de sol com o ar poluído de radiação e nadamos nos rios e lagoas contaminados.” (Victor Bisov, 15 anos, no relato “Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl)
Os Likvidátori
Na “Zona dos 30 km” foi proibido o cultivo de cereais, ingerir água e criar animais. Os animais da região foram todos sacrificados. No livro, há um comovente relato sobre o sacrifício de cavalos e gado, que antes do acidente andavam livremente pela região das pradarias em torno da usina. O relato foi contado para a jovem Galina Poteenko pelo seu tio, que trabalhou como Likvidátori (Liquidador), termo dado aos 600 homens que trabalharam dentro da região contaminada. Foram eles que combateram os incêndios, realizaram tarefas de descontaminação e limpeza. Os que sobreviveram, são hoje inválidos, recebendo pensões do governo para arcar com os tratamentos médicos de doenças. Verdadeiros heróis, os que morreram são enterrados como cidadãos comuns, totalmente esquecidos, e a culpa nunca é do Chernobyl, mas sim de câncer.
A maioria dos Likvidátoris possuía de 18 a 40 anos. Segundo estimativas de entidades que tratam das consequências do acidente de Chernobyl, 16 mil morreram e o restante luta contra a invalidez, causada por exposição à radiação beta e gama, que são aquelas de maior poder de irradiação no organismo. No relato “Histórias do tio Dmitri”, a jovem ginasiana Liudmila Láptsevitch conta sobre a vida dura e heroica daqueles que combateram os males de Chernobyl. Segundo o relato, os Liquidadores vieram de países como Rússia, Lituânia, Latóvia entre outros países da ex-U.R.S.S. Eles passavam dificuldades como o frio e fome. O governo distribuía carne enlatada para duas pessoas, o que não era suficiente, pois era uma lata de 328g para ser dividida entre duas pessoas. Para que sobrevivessem, eles se alimentavam das frutas e cereais contaminados. As roupas que utilizavam não eram suficientes para suportar o frio e as fogueiras eram proibidas, pois a radiação era espalhada. Depois de receberem relatos sobre a fome, o governo aumentou a alimentação fornecida, e as condições melhoraram. Os primeiros Liquidadores trabalharam desarmados, mas depois, com o aumento dos saques na região, eles começaram a andar armados. Havia ladrões que roubavam as hortaliças na tentativa de vendê-las nos mercados da Bielorússia, mas como as hortaliças estavam totalmente contaminadas com a radiação, as áreas de agricultura foram fortemente vigiadas, rodovias foram interditadas, árvores derrubadas para fabricação de estacas que foram utilizadas para pregar os arames farpados. Quando a prefeitura raramente autorizava alguns moradores de retirar bens das casas em que moravam antes da evacuação, os Liquidadores os ajudavam a carregar os pertences, sendo que muitos foram saqueados durante o período em que as equipes de Liquidadores eram insuficientes para a região. Apesar de a evacuação ter sido por questões de sobrevivência, muitas pessoas recusaram-se a sair. Era o caso de muitos idosos e por isso, os Liquidadores levavam pão a eles. Alguns foram encontrados mortos, dias depois. Morreram sozinhos, mas morreram ao menos em sua terra natal. Os Liquidadores também ajudavam a espalhar uma solução química que aglutinava a cinza radioativa que contaminava o solo. Com isso, diminuía-se a precipitação delas no ar, mas ainda assim, não diminuía a contaminação, apenas evitava que ela se espalhasse.
Os Liquidadores também eram responsáveis pelo sacrifício dos animais selvagens e domésticos, que se tornaram ameaça a eles. Gatos e cães abandonados pelas famílias que foram impedidas de levá-los tornaram-se uma ameaça. Cavalos, gado, ovelha, foram todos dizimados com tiros e lança-chamas. Abaixo, um trecho do relato, chamado “O dia em que os cavalos choraram”, da ginasiana Galina Poteenko. O relato dela foi baseado numa história que a jovem ouviu de um Liquidador.
“O meu serviço, bem como de meus companheiros, era o transporte de gado para ser morto. Carregávamos vacas e porcos, e assim que os deixávamos na beira do precipício, homens trajando uniforme do exército, que ali se encontravam, os fuzilavam imediatamente.
Na primeira noite, o grito triste dos animais e o barulho dos tiros das pistolas automáticas não saiam de meus ouvidos. Não conseguia pegar no sono. Nunca havia presenciado cena tão horrível.
Na manhã seguinte, recebi ordens para transportar cavalos. Creio que jamais poderei esquecer o que ocorreu naquele dia. Já viram alguma vez cavalos chorarem derramando lágrimas? É um acontecimento muito raro. Pois eles choravam. Choravam alto. Como se fossem crianças pequenas. Ao serem colocados na carroceria, eles deitavam suas cabeças sobre a cabine do motorista. Era como se quisessem firmar seus corpos. O choro miserável dos cavalos machucou meu coração. Eles seriam atirados no precipício ficando com os ossos estraçalhados. Fiquei imóvel, cobri o rosto com as duas mãos, e chorei em voz alta. Eu nunca havia chorado desta maneira. Os cavalos foram queimados com lança-chamas usados na guerra. Talvez isso amenizasse a dor desses animais, mas era um verdadeiro inferno.
Passei a beber como se estivesse me banhando. Durante as duas semanas de trabalho naquele lugar, os meus cabelos embranqueceram por completo, a ponto de nem minha mulher me reconhecer. Creio que não poderei esquecer, até minha morte, as cenas daquela grande matança. À noite, elas surgem em meus sonhos. O pesadelo continua”.
O Amor e a saudade da Terra Natal e parentes vítimas da radiação
Além de perdas de entes queridos, vitimados pela radiação, o acidente em Chernobyl também ceifou o lugar onde as pessoas cresceram, cultivaram lembranças. Um lugar onde as crianças brincavam e se sentiam seguras. Em todos os relatos do livro permeia a saudade da terra onde nunca mais puderam voltar. Sentem-se refugiados, mesmo durante os anos que se passaram. Falam das aldeias (vilarejos) que viviam e do sofrimento, principalmente dos idosos, que tiveram que abandonar suas terras. Recebiam cartas com relatos de como as aldeias foram destruídas e transformadas em meras colinas.
“O “enterro” da aldeia consistiu em usar uma escavadeira para fazer um buraco de cinco metros. Os bombeiros lançaram água do telhado à base de cada casa para não levantar o pó radioativo, e um monstruoso trator de esteira foi “varrendo” a aldeia para dentro do grande buraco. Não quisera ter visto essa coisa assustadora, bem diferente de um simples funeral. Quando penso no monte redondo de terra amarela que se formou ali, meu peito fica dolorido e minha garganta apertada.
Aquela aldeia transformou-se realmente numa aldeia fantasma, Dentro do silêncio triste, algumas casas ficaram em pé e cobertas de ervas daninhas. As janelas de algumas delas estão pregadas com tábuas em cruz e nas ruas não há ninguém – nem gente, nem cães, nem gatos -, apenas a vibração do chão onde estão sendo abertos os buracos do cemitério. Aldeia sem gente. Aldeia da morte.” ( Galina Róditch, no relato “Minha Mãe, eu e o amigo de Vovô”)
“Toda vez que eu vejo os gigantescos carvalhos centenários,
Que contemplo o riacho, ouço o seu burburinho,
O cantar das aves,
Receio que o meu coração vá saltar e subir ao céu.
Por não suportar tamanho esplendor temo perder a visão,
Não ouvir mais os sons e
Não conseguir mais apreciar
A beleza natural da minha terra natal.” ( Liudmila Tchúbtchik, 14 anos)
Apenas no dia dos mortos, as famílias podiam visitar seus entes, alguns deles enterrados em caixões de chumbo, para evitar que o solo fosse contaminado com a radiação. No cemitério de Mitsino, estão as lápides de 27 heróis que trabalharam no combate do incêndio no reator. Vasili Ignatenko, Vladimir Pravik, Nikolai Kibenok, Uladzimir Tsialiatnikau, Viktor Kibiánok, Uladzimir Tsichura, Mikalai Tsitsiánok, Leonid Tsialiatnikau são alguns dos heróis de Chernobyl, e a maioria deles e demais companheiros que estiveram na área de perigo morreram entre 2 a 30 dias depois da exposição. Vasili Ignatenko tinha 25 anos e era 1º tenente dos bombeiros. Ele subiu uma das escadas de setenta metros de alturas e ao pular sobre o telhado da sala de máquinas esteve de frente com a morte em forma de dose letal de radioatividade. Ele conseguiu livrar a sala das máquinas do incêndio, mas morreu no dia 13 de maio, vítima da Síndrome da Radiação Aguda. Deixou sua esposa Lyudmila grávida de uma menina. Quando ela foi visitar o marido que estava em seus últimos dias de vida, ela não pode abraçá-lo, nem beijá-lo, mas desobedeceu as ordens e mentiu para a enfermeira. Ela disse à enfermeira que já tinha filhos, pois se ela dissesse que estava grávida do primeiro filho de Vasili, a enfermeira não a deixaria entrar e somente veria um caixão pesado e lacrado de chumbo. O fato de estar grávida salvou a vida dela, pois parte da radiação passou para a criança em seu ventre, que morreu cinco dias após nascer. Hoje, Lyudmilla está inválida e tenta sobreviver da pensão que recebe.
O convívio com a doença e a espera da Morte
“Na avenida, ainda há sobras da neve do inverno que está terminando. Os meninos fizeram um boneco de neve, colocaram-no numa bandeja do hospital e o trouxeram para o nosso pavilhão.
O boneco de neve é lindo! Com certeza foi Tólik que o fez. Ele sempre quis ser escultor e por isso está sempre modelando peças com massa. Hoje, ele foi autorizado a se levantar também levantar o moral do ambiente. Afinal, começou a primavera.
Ao lado do boneco de neve foi colocada uma mensagem: Atenção meninas, essa é a última neve de vocês.
Por que última? Nós nos perguntávamos chorando.
O boneco de neve foi se derretendo pouco a pouco. Parece que se derreteu por causa de nossas lágrimas”. ( Trecho do diário de Nadzéica, no relato “O último boneco de neve”)
A edição brasileira chama-se “Bonecos de Neve e Chernobyl”. A escolha deste nome deu-se por causa do relato comovente de um dos jovens, Ígor Maroz, que conta a luta de sua prima, Nadzéika, contra o câncer. Aos quinze anos ela passou a sofrer de câncer, e então ela escrevia em seu diário. No relato, Igor diz que sua prima adorava a natureza, e tinha sonhos de ser pintora. Estudava no laboratório de artes. Os últimos dez dias de vida foram os mais tristes, e Igor nos traz trechos de seu diário. Nos trechos, ela diz que numa visita de seu avô ao hospital, ela lhe pediu que caso ela viesse a falecer, não gostaria de ser enterrada em um cemitério, mas sim numa planície ou bosque, ao lado de um pé de pera ou maçã. Tentou suportar a dor de todas as maneiras, faz pinturas e retratos para seu avô, chorou a morte do menino de sete anos do quarto 10. Um dia ela recebeu a visita de uma representante da Organização de Ajuda a Vida Humana da Dinamarca. Esta senhora havia perdido a única filha em um acidente de trânsito. Ela chorava e fazia carinho em Nadzéika, “a pureza do amor é sempre igual no mundo inteiro.” Na página referente ao dia nove de março, Nadzéica nos traz a tristeza de saber que o final está próximo:
“Acabou a fábula. Comecei a ficar ruim novamente. Nunca estive tão mal quanto agora. Já estou sem vontade de lutar contra a doença. As convulsões não param. O remédio não faz mais efeito. Tenho muito medo. Meus cabelos saem aos chumaços da minha cabeça.
Na consulta periódica, Dra Tatsiana me disse que o tratamento terminou. De agora em diante, tenho que recuperar minha saúde em casa. A médica olhou profundamente em meus olhos. Entendi e compreendi tudo.”
Ela morreu no final de março e sua última palavra deixada em seu diário foi a palavra em latim “VIXI”, que significa, em português, VIVI.
No relato “O destino da Bielorússia é o meu destino”, Volga Gantcharova, 16 anos, nos conta que seu pai, assim como outros Liquidadores, recebeu como “reconhecimento”, um certificado que dizia:
“Sargento Maior da Polícia – Alaksandr Miháilavitch
Cumpriu ordens na zona de 30 km.
Secretária do Interior de Khóinitsk.
Volga sofreu com a doença do pai, que veio a falecer dois anos depois do seu retorno ao lar, após trabalhar como Liquidador nas zonas radioativas. Com um tumor maligno na espinha dorsal, a família Gantcharova lutou até a exaustão para conseguir a cura do patriarca, que foi totalmente esquecido pelas autoridades da União Soviética. Segundo o relato, quando levaram o pai a um hospital de Moscou, após serem rejeitados em Minsk, um médico disse: “Porque vieram aqui? Não temos obrigação de tratar todas as pessoas da União Soviética”. Seu pai conseguiu tratamento nos Estados Unidos, mas depois de pouco tempo foi enviado novamente para Moscou para continuar o tratamento. Ele foi abandonado pela assistência médica e morreu no aniversário de 14 anos de Volga, data que nunca mais foi comemorada com alegria. Volga desde os catorze anos sente saudades de enfeitar a árvore de natal, enfeitar a mesa de aniversário. Segundo ela, no dia de seu aniversário de 14 anos, ela enfeitou o túmulo de seu pai, abrindo mão do aniversário. E deixou em seu relato uma pergunta que com certeza está até hoje entalada na garganta de vítimas do acidente, que recebem uma “Taxa de Caixão”, apelido dado ao pagamento oferecido pelo governo para as famílias que moram em zonas de risco:
“Onde estarão agora os responsáveis, líderes e respeitados cientistas que enfiaram milhões de pessoas no inferno da irradiação nuclear?”
Ler os 25 relatos de dor, sofrimento e indignação de jovens adolescentes que tiveram a infância e o auge da juventude destruída por um acidente até hoje perigoso, nos traz um olhar pouco explorado e esquecido sobre um “passado” que continua vivo e despedaçando vidas das pessoas que tanto amaram aquela terra devastada pelo erro humano. O reator 4 da usina de Chernobyl está coberto por um sarcófago e lá dentro, segundo os especialistas, material radioativo continua queimando. Será necessária a construção de mais um sarcófago, pois o que está lá já apresenta rachaduras e outros problemas decorrentes ao passar do tempo, mas a Rússia alega que não tem capital para tal, e os países ao redor também não se manifestam em ajudar.
As gravações e fotografias do local apresentam falhas decorrentes da radiação. Ainda hoje o entorno de Pripyat tem traços de radiação, crianças continuam nascendo com problemas decorrentes da irradiação dos pais afetados pela radiação. Ex-combatentes, que arriscaram suas vidas em pro da família e da pátria, lutam para sobreviver com o pouco dinheiro que recebem do governo. São considerados inválidos e são impedidos de trabalhar. Muitas pessoas sofrem de insônia e depressão, mesmo o acidente ser datado de 27 anos atrás. Não é apenas dor física, é também dor emocional. Muitas crianças da época ouviram, quando adultas, que não há mais nada o que se pode fazer para combater a doença. As crianças não podiam correr nos campos, colher flores, tomar sol ou banhar-se nos rios e lagoas em dias de calor. Passaram a infância vendo placas de proibições e trancadas em hospitais, vendo outras crianças e jovens morrerem. Os mais velhos acham que já viveram o suficiente, mas temem pela vida dos próximos da geração que está por vir. Em Chernobyl e arredores, a dor e a incerteza não é um fantasma, é uma consequência da radioatividade. Seria muito útil que todas as 100 redações das edições japonesa e russa fossem traduzidas para o português, e que houvesse mais edições desta obra que infelizmente está esquecida. Esta, entre outras obras que nos contam relatos de grandes tragédias são tão necessários para refletirmos sobre as grandes questões. Ler ficção é confortável, pois sabemos que as mentiras são mais confortáveis. A verdade dói, e cada relato deste horrível retrato das consequências de um acidente nuclear, nos traz a tona sobre o uso da energia nuclear. O quão seguro são as usinas? Devemos ou não deixar de lado a energia nuclear?
“Mesmo depois de anos, séculos
Esta dor não nos abandonará
É uma dor tão grande, tão infinita
Que não podemos nos afundar e esquecer
É uma herança da derrota.
Ficará por séculos acompanhando nossos descendentes
Permanecendo nos corações deles
E tirará a tranquilidade para sempre
Quero que cada um que vive sobre a Terra
Se lembre daquele ano, daquele dia terrível…” ( Maria Galúbovitch, 13 anos, no relato “Por favor, não apague a luz da vida”.)