Ano: 2016
Editora: nVersos
175 páginas
Em outubro de 2006, uma mulher foi presa acusada de matar sua filha de 1 ano e 3 meses com cocaína na mamadeira da criança, em Taubaté (SP). Atordoada, assustada e só, ela assinou uma confissão e foi levada para a prisão. Na prisão, foi brutalmente agredida por outras internas, tendo quase morrido pelas sequelas do ataque que deixou ossos quebrados e um olho quase cego, além de uma caneta bic enfiada inteira dentro de seu ouvido, o que resultou na surdez do ouvido direito e em convulsões decorrentes dos coágulos cerebrais. Datena, famoso apresentador de televisão, a apelidou de “Monstro da Mamadeira”, e seu nome esteve em todos os jornais, que incessantemente relataram a história desta terrível mulher capaz de fazer mal à sua própria filha.
Esta mulher se chama Daniele Toledo, e ela não matou sua filha Victória.
A neném, que desde muito pequenina vivia no hospital por decorrência de um problema não diagnosticado no cérebro que a levava a “apagar” diversas vezes, era amada, cuidada e adorada pela mãe, que durante toda a curta vidinha da criança a acompanhou, praticamente vivendo junto dela no hospital depois de abdicar de todo o resto de sua vida para cuidar da criança. Um dia, indo buscar água durante a noite, Daniele foi atacada por um homem, que depois revelou-se ser um estudante do 5º ano de medicina, que a estuprou dentro do hospital. A administração do estabelecimento, então, passou a afastar Daniele do local, às vezes negando seu acesso ao mesmo – mesmo com sua filha doente. Acontece que o jovem, vindo de uma família de nome e de posses na cidade, deveria ser protegido da denúncia de Daniele contra seu estuprador e o hospital, por sua vez, não queria se envolver neste processo, com medo de ser responsabilizado. Foi um pouco depois deste episódio que a filha de Daniele faleceu e que, de uma hora para a outra, Daniele se via privada de liberdade e acusada de ser “um monstro”.
O livro “Tristeza em Pó“, escrito por Daniele, narra a sua história, seu amor por sua filha e tudo que sofreu desde a morte da criança – o cárcere, as agressões, o isolamento, o assassinato de reputação, o medo, as sequelas físicas, a saudade da filha, a depressão. Contando com manuscritos de cartas e anotações de Daniele durante o tempo que ficou presa, 37 dias, o livro é um retrato duro da injustiça sofrida por ela. Durante este tempo, a investigação revelou que o resultado positivo do exame blue test para cocaína na mamadeira da criança havia sido um falso positivo e era, de fato, o remédio que Daniele dava à filha todos os dias, com prescrição médica. Até hoje Daniele não sabe o que matou sua Victória.
Tristeza em pó é um livro cru. A narração de Daniele, ao mesmo tempo que nos captura pela singeleza de alguns momentos, nos dá ânsia e desespero pela crueldade e injustiça do que ela viveu. Diferentemente de ler uma das muitas matérias de jornal que foram feitas a respeito de Daniele, antes e depois de ser provada sua inocência, seu relato é devastador porque é íntimo, afetuoso, ainda que cru – o tipo de livro que você não sabe se quer parar de ler ou ler até o fim, de uma só vez, para garantir que a voz e a vida de Daniele e Victória reverberem pelo mundo.
Se existem monstros nesta história, nenhum deles é Daniele. Eles são a mídia, que ajudou (e muito) a condená-la antes mesmo de qualquer julgamento; o sistema judiciário brasileiro, que dia após dia nos dá uma série de relatos e histórias que provam o quanto ele é injusto, seletivo e incapaz de garantir direitos; o hospital público que, em face à denúncia de uma mulher estuprada, fica do lado do estuprador e, por medo ou covardia, nega atendimento a uma usuária que necessita do serviço de saúde; e nós que, ao ligarmos a televisão pra assistir o Datena falar besteiras, compramos sem pestanejar seu discurso que, muito mais do que um conjunto de palavras grosseiras, são uma sentença que destrói a vida de alguém.