A série original da Netflix, Stranger Things, foi um sopro de vida bem-vindo nas últimas semanas para muitas pessoas. A doçura e o frescor das grandes descobertas da infância, os ritos de passagem e o heroísmo que os envolve vieram na forma de uma grande celebração e homenagem aos anos 80. Stranger Things tem gosto de nostalgia, de ímpeto em acrescentar um pacote de bolachas, um binóculo, uma lanterna e um gibi na mochila e conquistar o mundo. Com uma bandana na cabeça e, com certeza, uma bicicleta.
Este anseio por consertar os fatos, que temos na infância, com a simplicidade da imaginação, é uma característica que a série consegue expandir com a delicadeza que o período possui. A história de Stranger Things conta com o grupo adorável de quatro crianças: Mike, Dustin, Lucas e Will. Os quatro são o grupo perfeito dos arquétipos de enredos fantásticos, em que cada um tem sua personalidade, inteligência, humor e uma amizade posta à prova em um desafio que vai exigir uma grande jornada heroica. Isso ocorre quando Will é dado por desaparecido, e Joyce (Winona Ryder), sua mãe, contata o delegado Hopper (David Harbour) para investigar. O que parece um desaparecimento comum de uma criança se revela parte do mistério que envolve um laboratório que usa crianças para experimentos e acontecimentos sobrenaturais. Joyce acredita que o filho se comunica com ela a partir das luzes. E as paredes não são confiáveis.
O papel materno dado a Winona Ryder engrandece a participação da atriz na série. Ela concede força e sensibilidade a Joyce, e desejamos com emoção, na companhia da personagem, que aquelas luzes se comuniquem conosco. Além de Joyce, temos a personagem Eleven, a garota misteriosa de poucas palavras que possui um passado incomum, uma criança que recebe ajuda dos quatro meninos e logo se prova uma peça importante na história de Will, e ainda uma grande amiga. A atriz, Millie Brown, dá intensidade à personagem, por meio de seus olhares, e é um grande destaque entre o elenco. Assim como as crianças, que contam com a atuação perfeita de Noah Schnapp (Will), Finn Wolfhard (Mike), Caleb McLaughlin (Lucas) e Gaten Matarazzo (Dustin), os grandes responsáveis pelo carisma do grupo heroico.
Criada por Matt Duffer e Ross Duffer, a série é cautelosa em criar a atmosfera dos anos 80. Em nenhum momento ela sonha em ser mera cópia ou cair no pastiche. Ela tem sua própria originalidade, é uma série que possui como ponto forte o seu roteiro. Cheio de surpresas, com um arco bem amarrado, explicações interessantes e bem construídas dentro da Física e do gênero scifi, o roteiro dá vida a cada canto da pequena cidade onde a história de passa. Quando as crianças andam com suas bicicletas, temos a nostalgia de um público formado por ficções científicas que vão desde os tempos áureos de E.T. – O extraterreste, de Steven Spielberg, até os filmes mais maduros do gênero scifi como Alien, Star Wars e Contatos imediatos de terceiro grau. Contudo, a série ainda carrega a magia tão conhecida de enredos de C.S.Lewis, J.R.R.Tolkien – mencionado na série várias vezes –, Michael Ende com História sem fim e mesmo a geração atual formada pela magia de Harry Potter.
A série traz à tona o aspecto das cidades pequenas feitas por casas de madeira, ruas tranquilas, pinheiros, florestas misteriosas e casas aconchegantes, com quartos feitos por paredes cheias de pôsteres de bandas, com discos e fitas preciosas. A edição é muito bem executada também, pois se numa cena estão ocorrendo tiros, o som destes é logo unido à próxima cena com o som de tiros também. Ou quando foca-se numa lâmpada na casa de Joyce, e passamos para a lâmpada em outra casa. E ainda quando a cena promove uma tensão e a dilui, sem dar o tão esperado susto. São essas nuances que fazem da série uma boa composição. Além disso, a fotografia tem a simplicidade das tonalidades frias para compor todo o cenário de mistério da trama. Com a neblina azulada, os tons entram em contraste com as cores fortes das roupas infantis. Assim como as ótimas cenas do passado de Eleven em um espaço negro com apenas uma poça d’água refletindo a luz, para representar a grande solidão e claustrofobia da cena.
A tudo isso somado, há um quê de criaturas de Lovecraft, histórias bizarras de cidades locais, gênero policial, e o melhor de Stephen King. Como se pode ver, Stranger Things tem a preocupação de expandir suas referências e aprofundar a própria história. Primeiro, o roteiro da série busca convergir as ações de todos os personagens para uma única finalidade: encontrar Will e confrontar os eventos sobrenaturais. Joyce se une a uma investigação com o delegado Hopper. As crianças procuram pelo amigo junto a Eleven. E mesmo Nancy, personagem feminina a qual parece seguir o estereótipo da adolescente restringida apenas aos romances colegiais, cresce na história e toma parte deste confronto, igualmente, com Jonathan. Inclusive, este é um ponto forte de Stranger Things: não reduzir seus personagens aos estereótipos já desgastados, usados a partir da originalidade das inúmeras referências que tem do cinema e da literatura. E Nancy é a grande amostra disso: é uma garota que possui um enredo bem desenvolvido, que se apresenta determinada e forte – bem distante do estereótipo de menina frágil que deve ser salva -, bem como uma reafirmação de sua personalidade que vai além das relações amorosas e tentativas de ganhar um espaço entre os amigos do colégio, tendo relevância na trama.
Assim, Stranger Things tem gosto de uma nostalgia que insere novidade, também. Os roteiristas já avisaram que possuem mais de 30 páginas escritas sobre o mundo sobrenatural criado por eles, para a 2ª temporada. E isso soa bem promissor para o desenvolvimento proposto pela série. No fim, Stranger Things envolve o público com maestria, numa história onde mergulhamos nas sensações da infância e na beleza da fantasia. Ela promove uma homenagem, emociona por dar vida a esse mundo e tem grande mérito pelos personagens já memoráveis que trouxe à tela.
Para o público adulto, Stranger Things é a oportunidade de sentir a atmosfera, as sensações e as lembranças da infância e da adolescência. De revisitar nossos sonhos. E de conceder à rotina densa da fase adulta, das obrigações e do cansaço, aquele ânimo que uma criança tem diante de uma descoberta nova que traz da escola para casa. Uma curiosidade, um ânimo fresco que às vezes nos falta na rotina. Pensamos no tempo que não calculamos na infância, no tempo que não buscamos otimizar para render frutos no mercado de trabalho, um tempo fluido feito apenas das sensações simples e de conexão com o outro.
Em uma das cenas mais tocantes da série, podemos ouvir Heroes, de David Bowie, em uma versão densa de Peter Gabriel. É com este tom que a série mostra a que veio, um heroísmo que precisava desses personagens para abrir as portas do universo nostálgico da infância de seu público. E esse universo é tão amplo que pode ter gosto de games, de cinema, de livros infantis de mistério alugados na biblioteca, de bolacha compartilhada com os amigos no recreio, de tardes infinitas brincando, de carinho no abraço de um novo amigo. Mas, acima de tudo, Stranger Things carrega a magia e a força que uma ficção tem para tornar todos nós heróis por muitos dias.
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