Burroughs escreveu um livro sobre gatos. Chamada O Gato por Dentro, o livro contém diversos textos curtos em prosa, espécies de poemas em prosa no estilo de Baudelaire, a respeito de sua vida ao lado de seus gatos. O livro contém observações, notas de diários, pequenos textos narrativos e, como diz a própria capa “é um livro sobre como o convívio com gatos pôs Burroughs em contato com seu próprio eu”. Leia mais aqui!
Nos últimos anos, tornei-me um dedicado amante de gatos, e agora reconheço a criatura claramente como um espírito felino, um Familiar. Sem dúvida compartilha coisas com o gato, e também com outros animais: raposas voadoras, lêmures ai-ais, lêmures voadores com olhos amarelos enormes que vivem em árvores e são indefesos no chão, lêmures de cauda anelada e os pequeninos lêmures microcebos, martas, guaxinins, minks, lontras, gambás e raposas de areia. (p. 12)
Há quinze anos sonhei que tinha pego um gato branco com linha e anzol. Por algum motivo, estava prestes a rejeitar a criatura e joga-la de volta, mas ela começou a se esfregar contra mim e a miar de um jeito comovente.
Desde que adotei Ruski, os sonhos com gatos são nítidos e frequentes. Costumo sonhar que Ruski pulou em minha cama. Claro que isso às vezes acontece, e Fletch também é um visitante costumaz, que pula na cama, se aninha contra mim e ronrona tão alto que não consigo dormir. (p. 13)
Os cães começaram como sentinelas. Em fazendas e vilarejos, ainda é sua função principal anunciar qualquer aproximação. São caçadores e vigias, e é por isso que odeiam gatos.
– Veja os serviços que prestamos! E, enquanto isso tudo o que os gatos fazem é se refestelar e ronronar. Caçadores de rato, hein? Um gato precisa de meia hora pra matar um camundongo. Tudo o que os gatos fazem é ronronar e desviar a atenção do mestre da minha cara honesta de comedor de merda. É pior é que eles não têm qualquer noção de certo e errado. (p. 16)
O gato não oferece serviços. Ele se oferece. Claro que ele quer carinho e abrigo. O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos. (p. 18)
E meus gatos, envolvidos em um ritual que remonta a milhares de anos, se lambem tranquilamente depois da refeição. Animais práticos, preferem que outros forneçam a comida…alguns conseguem. Deve ter ocorrido uma divisão entre os gatos que aceitaram a domesticação e os que não aceitaram. (p. 20)
Não me lembro exatamente quando Ruski entrou na casa pela primeira vez. Lembro que eu estava sentado em uma poltrona perto da lareira com a porta da frente aberta. Ele me viu a quinze metros de distância e correu. Soltava uns ruídos agudos que nunca ouvi outro gato fazer e pulou em meu colo. Aconchegou-se ronronando e botou as patinhas perto do meu rosto. Dizia que queria ser meu gato.
Mas eu não o escutei. (p. 31)
Observei que, nas brigas de gatos, o agressor quase sempre sai vencedor. Se um gato está levando a pior em uma briga, não hesita e fugir, enquanto um cão pode lutar estupidamente até a morte. Como meu velho professor de jiu-jitsu disse:
– Se seu truque não funcionar, é melhor correr. (p. 34)
O gato branco simboliza a lua prateada que se intromete nos cantos e purifica o céu para o dia seguinte. O gato branco é o “limpador”, ou o “animal que se limpa”, descrito pela palavra em sânscrito Margaras, que significa “o a caçador que segue a trilha; o investigador; o rastreador frágil”. (…) Você não consegue afastar seu gato branco porque seu gato branco é você. Não pode se esconder de seu gato branco, porque seu gato branco se esconde com você. (p. 39)
Quinta-feira, 9 de agosto de 1984. Meu relacionamento com meus gatos salvou-me de uma ignorância mortal, absoluta. Quando um gato de celeiro encontra um protetor humano que o promova a gato da casa, ele costuma exagerar da única maneira que sabe: ronrona, se aconchega e se esfrega e rola de costas para chamar atenção. Agora eu acho isso muito tocante e me pergunto como posso ter achado um incômodo. Todos os relacionamentos são baseados na troca, e todo serviço tem seu preço. Quando o gato fica seguro de sua posição, como Ruski está agora, ele se torna menos efusivo, que é como deve ser. (p. 54)
Alguém disse que os gatos são os animais mais distantes do modelo humano. Isso depende da linhagem de humanos a que você se refere e, é claro, a que gatos. Acho que, às vezes, os gatos são estranhamente humanos. (p. 59)
A fúria de um gato é bela, incandescente com a pura chama felina, todo o seu pelo eriçado lançando fagulhas azuladas, os olhos ardentes e crepitantes. Mas o rosnado de um cão é feio, o rosnado de uma multidão de brancos racistas no linchamento de um paquistanês…o rosnado de alguém que usa um adesivo “Mate uma bicha por Jesus”, rosnado hipócrita e nervoso. Quando você vê esse rosnado, está olhando para algo que não tem rosto próprio. A fúria de um cão não é dele. É ditada por seu treinador. E a fúria de uma multidão em um linchamento é ditada pelo condicionamento. (p. 71)
O livro dos gatos é uma alegoria, na qual a vida passada do escritor se apresenta a ele como uma charada felina. Não que os gatos sejam marionetes. Longe disso. Eles são criaturas vivas que respiram, e quando se tem contato com qualquer outro ser, isso é triste: porque você vê as limitações, a dor e o medo e a morte final. É isso que significa contato. Isso é o que vejo quando toco um gato e percebo as lágrimas escorrerem por meu rosto. (p. 78)
Somos os gatos por dentro. Os gatos que não podem andar sozinhos, e para nós há apenas um lugar.
Edição: O Gato por Dentro, de William Burroughs, L&PM Pocket, 1992