O Julgamento de Sócrates apresenta uma Atenas tomada pela tensão entre tradição e pensamento livre, na qual Sócrates — o filósofo que desafiava certezas e incitava a juventude a questionar — é arrastado ao tribunal. Acusado por 3 cidadãos atenienses de corromper os jovens e de profanar os deuses da cidade, ele enfrenta seu destino com ironia sagaz e lógica implacável. A trama aprofunda-se na prisão. Ali, Críton, seu amigo leal, oferece-lhe a fuga, uma chance de escapar de uma sentença injusta. No derradeiro amanhecer, Sócrates recebe Xantipa, sua esposa, para um adeus. Depois, cercado por discípulos fiéis, ele conduz seu último diálogo: uma meditação sublime sobre a imortalidade da alma, a coragem perante o desconhecido e a beleza de uma vida vivida sem mentiras. Em vez de suplicar por clemência, defende a vida filosófica como um dever sagrado, transformando sua apologia num manifesto eterno sobre liberdade e integridade.
A dramaturgia de O Julgamento de Sócrates, assinada por Regis de Oliveira, constrói uma narrativa linear e profundamente humana a partir dos textos platônicos – Apologia, Críton e Fédon – transformando o debate filosófico em tensão dramática palpável. Ao estruturar a peça em três atos essenciais (o julgamento público, o dilema moral na prisão com Críton e o diálogo final sobre a imortalidade da alma), o texto converte conceitos abstratos em escolhas existenciais concretas, onde a recusa da fuga e a aceitação serena da morte tornam-se atos políticos de coerência máxima. Essa abordagem evita o didatismo puro ao dramatizar o conflito entre convicção e conveniência, fazendo da jornada de Sócrates não uma lição de filosofia, mas um testemunho visceral sobre o preço da integridade, onde as ideias ganham poder precisamente através do sacrifício de quem as defende até as últimas consequências.

O elenco de O Julgamento de Sócrates demonstra uma notável coesão e qualidade individual, com Luiz Amorim como fio condutor ao construir um Sócrates paradoxal que equilibra um ceticismo quase infantil com a autoridade madura de um líder, sustentando todo o espetáculo com sua presença central. A versatilidade do conjunto brilha especialmente em Breno Ganz, Marcus Veríssimo e Roberto Borenstein, que assumem múltiplos papéis com maestria, destacando o monólogo acusatório de Veríssimo, cuja oratória elevada se torna um ponto crucial durante o julgamento. Completando este quadro de excelência, Juliane Arguello inaugura a peça com uma partitura corporal visceral e coreografada de alta qualidade, estabelecendo desde o início o tom emocional e estético que caracteriza a produção, enquanto todo o conjunto trabalha de forma harmoniosa para dar vida ao conflito entre convicção e conveniência que estrutura o drama.
A técnica de O Julgamento de Sócrates, assinada por Cesar Pivetti na iluminação e Chris Aizner na cenografia e figurinos, atua em perfeita sintonia com a narrativa, utilizando recursos aparentemente simples, porém extremamente precisos em sua execução. A iluminação constrói uma jornada visual que transita progressivamente de uma atmosfera quente e cobreada, dominante durante a maior parte da peça, para tons frios e austeros que acompanham o desfecho trágico, criando uma transição cromática que reflete poeticamente o caminho de Sócrates em direção à morte. Na cenografia, Aizner concebe uma estrutura modular de notável versatilidade, permitindo transformações fluidas entre os distintos espaços dramáticos – do tribunal público à cela privada – sem interromper o fluxo narrativo, enquanto os figurinos, igualmente precisos, reforçam a veracidade histórica e as hierarquias sociais sem recorrer a excessos, demonstrando como elementos técnicos essenciais, quando bem executados, podem potencializar significativamente o impacto dramático e emocional do espetáculo.

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A direção de Bruno Perillo em O Julgamento de Sócrates se sobressai pela precisão com que orquestra todos os elementos da encenação, transformando um texto filosófico complexo numa experiência dramática visceral e coesa. Perillo demonstra notável sensibilidade ao extrair do elenco performances afinadas e multifacetadas, conduzindo Luiz Amorim na construção de um Sócrates que equilibra paradoxalmente a candura questionadora e a autoridade filosófica, enquanto coordena com maestria as transições entre os três atos fundamentais da narrativa. Sua visão unificadora integra com perfeição os recursos técnicos – aproveitando a cenografia modular de Chris Aizner para criar fluxo espacial e utilizando a iluminação de Cesar Pivetti como narrativa visual que evolui do cobre quente ao frio austero – sem jamais perder o foco no conflito humano essencial entre convicção e conveniência, evitando o didatismo e elevando o espetáculo a um testemunho emocionalmente impactante sobre o preço da integridade.
Em suma, O Julgamento de Sócrates consolida-se como um espetáculo de extrema relevância para nosso tempo, transcendo seu contexto histórico para pautar debates urgentes sobre ética, justiça e integridade no século XXI. Ao dramatizar o embate entre a convicção individual e a pressão social, a peça ressoa profundamente em uma era em que opiniões massificadas e julgamentos precipitados frequentemente tentam se sobrepor às leis e ao diálogo racional. A maestria com que a produção articula dramaturgia, atuação e elementos técnicos transforma o testemunho socrático em um espelho contemporâneo, convidando-nos a refletir sobre o preço da verdade em nossa própria sociedade e o valor inestimável de defender ideias mesmo contra a condenação popular, firmando-se assim não apenas como excelente teatro, mas como experiência cívica necessária e profundamente mobilizadora.
Ficha Técnica:
Texto e Concepção: Regis de Oliveira
Direção: Bruno Perillo
Cenografia e Figurinos: Chris Aizner
Iluminação: Cesar Pivetti
Direção de Movimento: Marina Caron
Direção Musical: Bruno Perillo
Assistência de Produção: Mirtes Ladeira
Assessoria de Imprensa: Flavia Fusco Comunicação
Designer Gráfico: Luciano Alves
Fotografia: Ronaldo Gutierrez
Contrarregra: Magnus Odilon
Camareira: Mirtes Ladeira
Produção: Regis de Oliveira e Bruno Perillo

