Um casal se reencontra depois de 10 anos no cemitério onde o filho está enterrado. Eles precisam decidir sobre a transferência dos restos mortais, uma vez que o solo do lugar está contaminado.
O primeiro ponto forte de “Veneno”, em cartaz no Teatro Estúdio, em São Paulo, está na força do texto. O público acompanha a exumação do relacionamento, das palavras que ficaram soterradas na garganta e do chorume resultante de sua putrefação. Os diálogos escritos pela holandesa Lot Vekemans e traduzidos por Mariângela Guimarães velam o silêncio que tal encontro provoca no homem e na mulher.
Diante da trama, isso até pode ser esperado pelo público. Mas a direção de Eric Lenate ramifica o efeito do silêncio e da fala ao criar uma sala claustrofóbica, de luzes baixas e espaços incômodos. Não é uma sala de interrogatórios, como a primeira impressão sugere. Lenate usa a disposição da mesa e das cadeiras para derrubar essa obviedade, transformando o local do encontro ora em um ringue (como no momento em que Alexandre Galindo bufa, encurralado no canto do palco), ora em um cemitério paralelo.

Dessa forma, o espaço morto funciona como um terceiro personagem. Em dado momento, por exemplo, ele senta-se em um lado e ela, do outro. Há uma cadeira vazia entre eles, como se a ausência precisasse ter esse corpo invisível – e, ao mesmo tempo, inviolado – para servir de mediadora. A ausência é o terreno seguro; por isso o reencontro se parece tanto com um pântano.
O que Lenate faz para evitar que as dores, rancores e memórias dos personagens sejam engolidos pelo melodrama é dosar a dinâmica fazendo com que os elementos mais triviais se tornem peçonhentos. Um chaveiro em forma de cachorro que ela balança com ansiedade, o telefonema que ele atende enquanto sua ex-mulher usa o banheiro, o barulho do copo d’água sendo preenchido… o diretor usa até o som da máquina de café – devidamente escondida – para desenterrar o passado de modo angustiante. Não é exagero destacar a importância do trabalho de som do espetáculo que em alguns momentos lembra “Trama Fantasma”, filme dirigido por Paul Thomas Anderson. É sofisticado o vínculo que o encenador estabelece entre o mundo externo e o inconsciente dos personagens.
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Para o psicanalista Contardo Calligaris, o protótipo do sonho amoroso masculino é o apaixonamento na separação. O desejo nasce da falta. É a distância que sustenta o desejo. De modo que muitas pessoas só autorizam tal desejo quando o objeto já foi perdido. Embora tal recorte esteja relacionado à obra lacaniana e ao amor e o espetáculo tratar sobre o luto, o momento em que o casal protagonista de “Veneno” se encontra, o mundo ideal – a dor perfeita – se esvai em diversas possibilidades. Há muita coisa para ser dita. Mas, depois de 10 anos, não é arriscado perder a perfeição dessa dor? O diálogo pode explicar os pontos de vista, pode plantar perdão e não é isso que essas duas pessoas querem. Ou é?
Alexandre Galindo e Cléo de Paris, dois artistas capazes de enterrar uma pilha de corpos apenas usando os olhos, evitam as respostas que eventualmente o público busca nesse tipo de encontro. Tanto o homem quanto a mulher têm falhas e habilidades que foram eclipsadas pela morte do filho. Antes éramos pais. Agora somos o quê?
Talvez seja isso que fica ao final. Como dois animais peçonhentos, eles vão infectar tudo que tocarem. Do chocolate que vão comer ao vinho que vão beber, dos novos amores que vão viver até as canções que vão cantar, nunca haverá antídoto para o que passou. E esse é o mal. Para quem fica, a vida é o próprio veneno.
Ficha Técnica:
Texto: Lot Vekemans
Tradução: Mariângela Guimarães
Direção: Eric Lenate
Elenco: Cléo De Páris e Alexandre Galindo
Figurinos: Fabiano Menna
Cenário, Som, Iluminação e Programação Visual: Eric Lenate
Direção de Produção: Alexandre Galindo
Produção Executiva: Lucas Asseituno
Assessoria de Imprensa: Helô Cintra e Douglas Picchetti (Pombo Correio)
Fotos: Leekyung Kim
Realização: Teatro Estúdio

