“Vai pra Cuba!”, nos disseram tantas vezes nos últimos anos, à guisa de xingamento. Mas nada poderia estar tão longe de uma ofensa quanto o convite que se transformou em ordem. Cuba é um país que não tem nada – só saúde, educação e cultura. É um país com taxa zero de analfabetismo e desemprego. É, há sessenta anos, duramente golpeado por um embargo genocida e mesmo assim não se sujeita à pressão. É sobre esse país resiliente e fascinante que versa o documentário “Sin Embargo, Uma Utopia”.
O maestro Kleber Mazziero comemora seus cinquenta anos de carreira com um concerto em Cuba, onde um famoso pianista local, Yanner Rascón Falcón, e dois jovens pianistas, Angelo e Liah, tocam duas sonatas que ele compôs especialmente para comemorar a efeméride que não é apenas sua: quando Kleber completa 50 anos de carreira o Museu de Belas Artes de Cuba completa 110 anos de funcionamento. Cuba não é escolhida por acaso: desde sempre, o país era uma utopia na cabeça do maestro. Havia chegado a hora de conhecê-la.
A expressão em espanhol “sin embargo” significa “no entanto”, “entretanto”. Mas, se a separamos e consideramos apenas o “embargo”, aí está o que Cuba sofre dos Estados Unidos há sessenta anos. É impossível não pensar como Cuba seria “sem embargo” enquanto assistimos ao documentário. Podemos afirmar com uma boa margem de certeza: seria uma potência, pois já o é em algumas áreas mesmo com a exagerada medida de isolamento.
Para dar ênfase a algumas ideias, são mostradas em várias ocasiões coisas que o maestro contou aos seus interlocutores – como sua interpretação social, pois é também filósofo, de que todos queremos ser especiais, mas em realidade devemos abraçar o fato de que somos todos comuns. A repetição cansa um pouco, mas alcança seu intento ao ser ouvida em português e num espanhol bastante decente.
Conversamos com o maestro Kleber Mazziero e com a diretora Fabiana Parra sobre este fascinante documentário.
Como foi a escolha de tom para que o filme não ficasse didático demais em relação ao mundo da música, por exemplo, contando a história da música dodecafônica?
Kleber Mazziero: Desde o primeiro momento da concepção do roteiro do filme, a diretora Fabiana Parra tinha plena certeza de que o filme deveria girar em torno do encontro entre um compositor brasileiro e pianistas cubanos, entre a arte brasileira e a arte cubana, entre Brasil e Cuba. Para isso, nada melhor do que a música de natureza erudita, cujo discurso é composto por uma linguagem universal.
Fabiana Parra: Para minha sorte, a “personagem” Kleber Mazziero, o artista brasileiro, o compositor brasileiro que interage com as “personagens” cubanas do documentário, é também um professor. Quem assiste ao documentário entende, mesmo que em linhas gerais, o dodecafonismo e outros conceitos musicais, que ficam apenas como pano de fundo de uma conversa muito mais profunda.
Além de pianista, Kleber Mazziero é cineasta. Como este filme se encaixa ou se compara aos outros 38 que ele fez ao longo da carreira?
Fabiana: “Sin Embargo, uma Utopia” é um filme muito próximo do universo do filme anterior do Kleber Mazziero, “Arlecchino e o fim da música”, que foi gravado na Europa e ganhou prêmios em festivais nos cinco continentes. Justamente por isso, o meu desafio era construir uma narrativa que ao mesmo tempo se aproximasse de “Arlecchino”, mas não repetisse a fórmula.
Kleber: E não repetiu em nada! Afinal, apesar de ser um filme que tem a música como elemento transversal ao longo de toda a narrativa, o filme se consolidou também como um documento fundamental sobre uma realidade que está para além da música. O filme trata sobretudo da situação de um povo levado a condições de vida muito difíceis pela ausência mínima de víveres devida ao Embargo econômico imposto a Cuba há mais de 60 anos.
Disseram nas notas para a imprensa que Kleber gravou 15 horas de material só em Cuba. Como foi a escolha do que iria ficar nos 90 minutos do filme? O material descartado tinha algo de impactante, como a visita do Kleber aos desabastecidos mercados do governo?
Kleber: Como foi a Fabiana que fez todas as gravações e escolhas, deixo para a diretora do filme falar.
Fabiana: Escolhi uma equipe espetacular de jovens cineastas (Gabo Martines, Gabriella Lira e Kauã Bella) que encampou o projeto, e juntos gravamos esse material enorme. A partir daí, começou o trabalho que sempre causa dor a uma diretora: escolher o que fica no filme e, pior, o que não fica no filme. A escolha foi feita embasada no roteiro estabelecido: os sete capítulos do filme trazem as imagens mais impactantes entre muitas outras que poderiam figurar o discurso. Uma imagem fala pela outra.
Agora que o filme chega ao público, como vocês esperam que seja jogada luz sobre os artistas e as manifestações artísticas de Cuba? Creem que haverá mais pessoas interessadas neles?
Fabiana: Uma intenção essencial minha é justamente esta: lançar luz sobre os artistas cubanos, essas pessoas extremamente talentosas e com uma formação educacional fora de série. Cuba é, principalmente na atualidade, vista com olhos de preconceito e até alguma aversão. Depois de assistir a “Sin Embargo, uma Utopia”, quando alguém disser “Então, vai pra Cuba”, o público há de responder: “Vou, mesmo!”.
Kleber: Eu vou! (risos) Eu espero que esse filme faça com que mais e mais pessoas se interessem pelos artistas e, na verdade, por toda a população de Cuba. Como o Embargo já acontece há mais de 60 anos, nós que não sofremos as privações que eles sofrem, nos esquecemos, nos acostumamos com esse genocídio lento, frio e calculado. Assim, todos nós temos de nos interessar por esse assunto. Não podemos nos esquecer nem um minuto desse assunto. Tomara que o filme alcance esse objetivo.
O filme começa e termina com um apelo aos cidadãos norte-americanos e seus representantes eleitos. De que maneira vocês esperam que este filme seja recebido num lançamento nos EUA?
Kleber: Eu espero que o filme Sin embargo, uma utopia” mostre ao público estadunidense um fato que, provavelmente, eles não conhecem bem. É possível que um cidadão estadunidense não saiba que há mais de 60 anos o país de que eles têm tanto orgulho sufoca de fome onze milhões de pessoas.
Fabiana: A política internacional não consegue já há mais de 60 anos lidar com esse problema. Portanto, a solução tem de vir de outro âmbito. Eu acredito que somente a Arte seja capaz de mobilizar as pessoas para essa causa que não é de natureza ideológica, mas humanitária. O filme, propositalmente, traz rostos para o problema, humaniza o problema. A dor de cada cubano tem de ser a nossa própria dor.