Dentre todas as gerações, existe uma que me parece estar em uma zona das mais distintas e interessantes do século XX. É a geração nascida ali pelo fim da ditadura militar até a queda do Muro de Berlim. Chamo essa geração de pós-tudo, pois me parece que sua adolescência, ali pelo início dos anos noventa, dá uma impressão de que já se viveu tudo, de que todos os momentos históricos já passaram. É a geração pós-tudo político e pré-tudo cibernético. Nela, nem a queda de duas torres americanas, nem operações de reconstrução de hímen tem qualquer impacto. Tudo é absorvido e vivido na égide do “é possível”. Essa é a geração de Daniel Galera.
“Cordilheira” é um romance do autor pertencente à série “Amores Expressos”, em que escritores são enviados a lugares distantes do mundo para que escrevam histórias de amor em que a cidade seja o pano de fundo. No caso de Galera, a ambientação do romance se dá em Buenos Aires, com seu traço de frieza europeia e convulsão sul-americana.
O livro conta a história de Anita, uma escritora brasileira em dúvida sobre sua carreira, com seu pai recentemente morto, cansada de seu relacionamento com Danilo. Desesperada para engravidar, resolve passar um tempo em Buenos Aires, Argentina, onde haverá o lançamento de seu primeiro livro. Lá, conhece um rapaz, admirador de seu livro, com quem começa um relacionamento estranho, ao mesmo tempo apaixonado e frio. Assim, ela passa a conhecer um grupo de amigos de Holden, o rapaz, e descobre que eles possuem um estilo de vida esquisito, em que suas personalidades se misturam com personagens de livros.
“Cordilheira” é, essencialmente, um livro geracional. E de uma geração, como já disse acima, em que os desejos e anseios não parecem mais amparados por um processo histórico, mas por um lapso em que a decisão individual parece afogada em meios às decisões que tomam pelo mundo a fora. Por isso, a personagem de Anita é essa figura inteligente, bela e livre que não tem muito para onde ir. O problema é que ela sente que precisa escapar. Poderia dizer que é uma personagem com uma imensa vivência, que circula por muitos lugares, vê e aprende muitas coisas, mas que não consegue incorporar nada para a base da experiência – o que, de certa forma, representa cada vez mais um esvaziamento da capacidade de comunicação com outro. Isso resulta em uma espécie de “paranoia” de isolamento, em que as amigas e os relacionamentos são apenas forma de controle e um peso que se deve carregar. Buenos Aires, então, é o ponto de fuga encontrado.A ansiedade de Anita, me parece, é a mesma que se coloca para o próprio Daniel Galera. Um escritor em gestação, que começa a publicar seus livros e que precisa, em um mundo que parece ignorar a literatura, tentar com esforço descobrir qual seu lugar no mundo e qual o lugar de sua escrita. Tanto é que um dos caminhos de Anita, que não sei se é o de Galera, é desprezar o próprio livro.
“Cordilheira” soa, em muitos momentos, como um exercício de escrita e de realização de Galera como escritor. Como se ele organizasse todo seu mundo interior de forma mais densa para que caiba em um romance e para que caiba no amor e para que caiba na Argentina. Passa uma impressão parecida com o “Estorvo” (1991), do Chico Buarque, que nasce para se afirmar como voz narrativa. Após “Dentes Guardados” (2001) e “Mãos de Cavalo” (2006), “Cordilheira” talvez seja o primeiro sopro de lirismo que se permite Galera, colocando pela primeira vez uma mulher como foco de sua narrativa, ao contrário dos gritos e apelos violentos da masculinidade das outras obras.
Não se pode deixar de destacar a vontade de simbiose entre escrita e vida. Como diz Holden:
Descasque qualquer bom escritor e você verá que, no cerne, ele apenas elabora tudo que gostaria de viver, as pessoas que gostaria de ser, o mundo como apenas ele enxerga. (…) Quem não escreve o que desejaria viver, quem não assume isso para si mesmo, é um covarde.
Talvez seja por isso que os amigos argentinos de Anita buscam incessantemente a realização na vida daquilo que tem em seus respectivos livros e com isso culminam na tentativa de tornar a vida também uma literatura, que caiba dentro de um processo narrativo, e que, por fim, tenha sentido. Mesmo que o sentido seja o fim.
A vontade de gestação e Anita é a mesma vontade literária de Holden: existir-se por fora de si, ou junto, ou ao lado, mas existir, ter uma forma de vida que tenha algum fulgor e autenticidade. É engraçado que, em determinado momento, Anita critica Holden por ele ser um homem “sem cheiro”:
A cama quase não tinha cheiro. Na verdade, Holden quase não tinha cheiro. Era misterioso. Não tinha cheiro nenhum, nem bom nem ruim, natural ou artificial. Até seu hálito era neutro. Comecei a cheira-lo.
É o caminho que se percorre em “Cordilheira”: que cheire o que não tem cheiro, que nasça o que não tem vida, que viva o que é literatura. A escrita de Galera, apesar de pousar ainda em recursos-muleta como o exotismo geográfico e o fetichismo sexual, parece, em “Cordilheira”, estar em um caminho que ruma à maturidade, o que se comprova em trabalhos mais recentes do autor como“Barba Ensopada de Sangue”, de 2012. É um livro para se acolher, justamente porque representa uma geração que vaga pelo mundo, procurando um bocado de companhia e hospitalidade sem culpas.
Postado originalmente no Indique um Livro