A escrita de Lourenço Mutarelli se dá sempre em um limiar entre imagem e palavra. A influência dos quadrinhos faz com que as sílabas de seus vocábulos desenhem, enquanto seus desenhos gritam ordens e versos. Aliás, pode-se dizer, em relação ao procedimento artístico de Mutarelli, que não há qualquer distinção em seu trabalho entre a arte de pintar e a arte de escrever. A diferença mora no fato que, no nanquim, sua técnica preferida, ele retira a tinta de uma página para compor as formas, enquanto que, nos romances, os vocábulos preenchem de negro o que até então era branco.
Miguel e os Demônios, quinto romance do autor, é sobre Miguel, um policial atormentado e cheio de manias, que é designado para matar quatro jovens drogados, em uma espécie de limpeza da cidade, ao mesmo tempo em que se defronta com uma múmia mexicana, repleta de moscas, na casa de um travesti com quem começa a se envolver. A partir daí, seu caminho de degradação e queda é visível: volta a fumar, deixa de fazer a barba, vê seu pai sofrer um AVC, alucina. Um caminho sem volta numa trajetória que parecia, até então, improvável.
O interessante da escrita de Mutarelli é que ela aponta para dois lados simultaneamente: um de vazios, de ausências, de “quases” e impossibilidades, e ao mesmo tempo outro em que inscreve uma brutalidade, uma violência, com uma linguagem direta, de superfície. A questão está, me parece, no fato de que não há interiorização em suas obras, apenas os reflexos exteriores, então não é possível imaginar o que há por dentro, por trás; está tudo ali palpável e escrito. Por conta disso, em Miguel e os Demônios, o que se percebe é uma escrita basicamente cinematográfica, que inclui lembranças e imaginações em tons sépia e diversas indicações da sétima arte como “a câmera se afasta” ou, simplesmente, “fade”.
Investigando as figuras do livro podemos tirar alguns indícios daquilo que Mutarelli expõe na obra. Seu interesse pelo demoníaco ou pelo mito da queda é comum, desde os quadrinhos como O Dobro de Cinco, passando pelo romance O Ato de Produzir Efeito sem Causa, chegando até à peça de teatro Mau-Olhado. Para isso, ele se utiliza de elementos quase sempre comuns às formas artísticas e simbolizações demoníacas: moscas, cães, múmias, cachorros, passando uma ideia da inversão de valores entre o papel de Deus e do Diabo.
Em Miguel e os Demônios, a personagem principal é descrita como: “Miguel é tímido. Miguelnunca se sente confortável. Para Miguel o mundo é como uma festa para a qual ele não foi convidado.” A visão que tem de si próprio é também a que se espalha para sua namorada Sueli:“Os cabelos são emaranhados de forma antinatural. Lembram uma porção de Miojo Lámen. Miguelé quase um expert em Miojo. Consegue identificar na tintura os temperos de galinha caipira, carne e bacon.” Pedro, investigador amigo de Miguel, é um negro alto que come Fandangos. Osvaldo, policial amigo, é um rapsodo que gosta de colecionar e contar casos criminológicos bizarros.
É a partir da configuração desse universo, composto de elementos básicos e singelos que se repetem, que o livro parece se irromper e não conseguir escapar. Ele não foge de sua própria materialidade que é o fragmento, o corte e a repetição. Mutarelli, fã confesso de William S. Burroughs, poeta beat, afirma repetidamente que concorda com o poeta quando diz que a palavra é um vírus parasita que se hospeda no homem. Assim, o autor tenta fugir desse vírus se entregando completamente a ele, tentando compor imagens que atravessem o sentido das palavras e as superem. É incisivo. Resta ao corpo das personagens quase fazer, quase sorrir, quase concordar, ou então despejar um ímpeto violento e arrebatador. Talvez seja nessa chave queJoaquim, pai de Miguel, tenha um AVC e fique impedido de falar: preso a si, sem falar, ele se liberta, mas pelas avessas, tornando-se prisioneiro novamente.
Miguel e os Demônios entra para o hall das obras de Mutarelli que merecem destaque. É daqueles romances em que tanto o autor quanto as personagens se debatem sobre si mesmos e percebem que existem impulsos humanos muito além de nosso cotidiano óbvio e que, apesar do fato de não sermos capazes de tocá-los na maior parte do tempo, isso não faz deles algo inexistente. Fora todo esse mundo mágico, que, de tão patético, beira o misticismo tolo, restam somente o fandangos, o miojo, os cigarros, as travestis e seus cus…
Postado originalmente no Indique um Livro
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