É engraçado. Algumas pessoas ao chegarem a uma certa fase da vida precisam olhar para seu passado e reconstruir aquilo que viram e viveram para poder, talvez, manter viva toda sua história, principalmente quando a memória começa a rarear e os amigos a morrer. Interessante também como isso, nos escritores, muitas vezes não se dá por um impulso biográfico, mas por uma escrita altamente criativa e imaginativa, entre o compósito do imaginário e a percepção histórica.
Sagrada Família de Zuenir Ventura, último livro do autor, é descrito como “romance com vários elementos autobiográficos”. Eu vejo o livro como uma mistura dos dois, uma vez que, primeiro de tudo, ele é composto pelo mais importante numa obra literária: a imaginação. Depois, porque a própria vida de Zuenir, passada tantos e tantos anos atrás, também se torna, aos poucos, uma zona nebulosa por detrás das lembranças do autor e se reconstrói em histórias já não tão verdadeiras assim.
O romance conta a história de Manuéu, grafia que ele ressalta com orgulho, que passa as primeiras férias na casa da Tia Nonoca, ao lado das primas Cotinha e Leninha na serra fluminense, interior do estado do Rio de Janeiro. É ali que ele tem suas primeiras experiências com a vida como a descoberta do sexo, o início dos primeiros flertes, namoros e traições. No entanto, Manuéu de toda essa história é apenas um mero observador, sem participar ativamente da história da família. Uma das poucas experiências contadas por ele é a lembrança de ir toda à tarde à farmácia com Tia Nonoca, onde ela dizia tomar injeções que, por um descuido, acaba se revelando como a primeira e traumática visão de uma atividade sexual. O fato, contado com humor e graça, inicia a narrativa que nos coloca diretamente no pensamento de uma pequena cidade por volta da década de 40 no Brasil em plena segunda guerra.
O que vejo como falha no livro é o fato de que as memórias de Zuenir não sofrem qualquer tensão narrativa com o romance, a arte ou o mundo contemporâneo. O livro escrito em 2012 parece ter sido escrito ao lado de romances como Clarissa (1933) de Erico Verissimo ou o já clássico Ciranda de Pedra (1954) da Lygia Fagundes Telles. Assim, embora Zuenir consiga se filiar a um gênero memorialista, ligado à família pequeno-burguesa brasileira que atravessa o século XX lutando, conquistando e perdendo direitos e liberdades, ele não é capaz de formalmente acompanhar esses avanços e sua narrativa soa tradicionalista ou conservadora, mesmo que esteticamente bela.
Não quero dizer com isso que um autor seja obrigado necessariamente a se engajar na arte contemporânea e na renovação dos gêneros literários de seu país, no entanto, para um autor como Zuenir, conhecido pelas excelentes colunas de O Globo e as obras ligadas ao ano de 1968, momento de grande reflexão de uma nova modernidade brasileira (o que Tom Zé chama de nossa segunda Revolução Industrial), talvez fosse esperado uma maior tensão com o pensamento, pelo menos, sobre o momento da Segunda Guerra que, na obra, é apenas citado algumas poucas vezes.
Sagrada Família talvez seja, então, um livro para os mais velhos e para os saudosos de um tempo que não retorna mais, enquanto que Zuenir Ventura parece ter perdido o ímpeto de obras como 1968 – O Ano Que Não Terminou. Vale a leitura, mas mais como construção de um passado do que qualquer pensamento que possa produzir, no presente, um futuro.
Postado originalmente no Indique um Livro