Há aproximadamente 400 anos, em uma época na qual as mulheres não tinham acesso à educação formal e, portanto, à escrita, o Nüshu, 女书, que significa “escrita das mulheres” em chinês, foi inventado.
Criado na província chinesa de Hunan para ajudar as camponesas de aldeias isoladas a lidar com a condição em que seus pés eram enfaixados e elas consequentemente ficavam confinadas em seus quartos, o Nüshu foi inicialmente rabiscado no chão com cinzas de wok, usando galhos de árvores. Posteriormente, escrito em leques dobráveis ou bordado em lenços, e evoluiu para poesia.
“É uma história com a qual a maioria dos chineses não está familiarizada”, diz a cineasta Violet Du Feng em seu documentário de 2022, Hidden Letters, Cartas Ocultas, em tradução livre. “Na literatura, há poucos registros da vida, existência e experiências das mulheres, e eu não cresci sabendo nada disso – eu não sabia nada sobre o Nüshu, e sentia que deveria saber.”.
Segundo Zhao Liming, da Universidade Tsinghua, em Pequim, “o Nüshu não é apenas um sistema de escrita, mas toda uma cultura feminina tradicional tipicamente chinesa. Era como um raio de sol que tornava a vida das mulheres mais leve. O Nüshu permitia que as mulheres se expressassem com sua própria voz e resistissem à dominação masculina.”.
O Nüshu é às vezes visto como uma escrita secreta, um meio misterioso de comunicação sem que os homens soubessem. A realidade é bem diferente, de acordo com Zhao Liming. A escrita sempre foi pública — só que, em uma cultura tão patriarcal, os homens tinham pouco interesse na escrita das mulheres, diz ela.
E, em vez de servir como uma forma de comunicar ideias subversivas, o Nüshu era frequentemente usado para educar as mulheres sobre como se tornar a esposa confucionista ideal. Antes de um casamento tradicional em Jiangyong, a mãe da noiva costumava cantar uma canção em Nüshu quando ela saía de casa para se casar, incentivando-a a ser uma boa esposa para o seu futuro marido.

O Nüshu é preservado como um artefato cultural na China, porém ele significava muito mais para suas praticantes. “Para nós, é arte”, diz um guia do museu em Hidden Letters. “Para elas, não. Foi criado para se rebelar.”
Hoje, por conta das redes sociais, esse antigo sistema de escrita ganha uma nova vida entre jovens, considerado um símbolo de força feminina.
No Xiaohongshu, 小红书,Pequeno caderno vermelho, em português, uma espécie de versão chinesa do Instagram e do TikTok, o número de visualizações para a hashtag “#nushu” chega a 72 milhões. A maioria são publicações de mulheres jovens que compartilham fotos de tatuagens ou outras criações escritas com o Nüshu.
As palavras do Nüshu são lidas em um dialeto local, o que complica seu aprendizado para moradores de outras regiões. Mas sua elegância e singularidade explicam o renovado interesse por essa escrita, afirma a professora He Yuejuan.
“Os estudantes de arte a apreciam particularmente”, comenta diante de sua galeria, onde vende joias e xales adornados com inscrições em Nüshu. Oriunda de Jiangyong, a professora conta que o Nüshu era “parte de sua vida cotidiana” durante a infância. Ela é uma das 12 “herdeiras” do Nüshu reconhecidas pelo governo chinês e tem direito a ensiná-lo.

Cerca de uma centena de estudantes tomaram parte em uma oficina de uma semana organizada pelas autoridades locais de Jiangyong, província de Hunan, sul da China, para promover o Nüshu.
Zou Kexin, uma das jovens presentes, disse que ouviu falar do Nüshu nas redes sociais e queria “experimentá-lo pessoalmente”. “É um sistema de escrita próprio das mulheres, o que o torna realmente especial”, afirma a estudante de uma universidade de Sichuan.
Tao Yuxi, estudante de animação de 23 anos, é um dos poucos homens que participam da oficina. Ele conta que quer aprender o Nüshu para encontrar inspiração em suas criações.
Embora tenha sido criado para as mulheres, o Nüshu, em sua opinião, faz parte do patrimônio cultural nacional. “Todos deveríamos lutar para preservá-lo, mulheres e homens”, defende.
Entretanto, Hu Xin, uma premiada especialista em Nüshu que trabalha em um museu de Jiangyoung, província de Hunan, na qual nasceu o sistema de escrita, se preocupa com o fato de que a essência da arte está sendo diluída em apresentações para turistas.
O Nüshu está, sem dúvida, vivendo um auge. É possível ver os caracteres — que constituem uma escrita fonética para registrar o dialeto local — nas placas das lojas do centro de Jiangyong, em parte graças aos esforços do governo para manter a escrita viva. Mas o Nüshu não tem mais seu objetivo original de dar às mulheres sem instrução uma saída para seus sentimentos. Em vez disso, a essência do Nüshu, de acordo com algumas de suas herdeiras, corre o risco de se perder na estratégia de turismo das autoridades.
Fontes:
https://www.dw.com/pt-br/jovens-revivem-escrita-feminina-secreta-na-china/a-73612453;
https://www.bbc.com/culture/article/20221107-nushu-chinas-secret-female-only-language;
https://courier.unesco.org/fr/articles/nushu-des-larmes-au-soleil;
https://www.sixthtone.com/news/1002805.

