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Para muitas pessoas, sobretudo mais jovens, o lendário Donald Sutherland – considerado um dos maiores atores de sua geração por muitos, e descrito como “um aristocrata da atuação” – é mais conhecido como o Presidente Coriolanus Snow – antagonista da franquia Jogos Vorazes, e largamente considerado um dos maiores vilões da história da literatura recente. O que é menos conhecido é o fato de que, quando os filmes começaram a ser produzidos, o papel não foi oferecido à Sutherland – ele fez campanha por ele.
A história é interessante: após ler os três livros – na época, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (livro que tem o Presidente Snow como protagonista) e Amanhecer na Colheita ainda não tinham sido publicados – da série, Donald Sutherland escreveu uma carta de três páginas para o diretor responsável pelo primeiro filme, Gary Ross, contendo um quase-ensaio apaixonado sobre poder, maldade e o personagem que desejava interpretar, e solicitando uma reunião. O resto é história: o ator não apenas conseguiu o papel, como se envolveu de tal forma com o personagem e com os filmes que gerou um aumento significativo do tempo de tela do presidente na história.

Apesar do tamanho modesto do papel e de ninguém ter lhe pedido para fazer parte do filme, Donald Sutherland disse que insistiu para conseguir Snow após ter lido o roteiro, que o encantou tanto que o levou a ler os três livros originais. Sutherland, conhecido por seu ferrenho ativismo político, tendo sido um opositor feroz da Guerra do Vietnã na década de 70, e tendo estado numa lista de observação do governo americano por vários anos – quando alguém disse a ele que ele tinha o costume de rejeita figuras de autoridade, Sutherland respondeu, “Figuras autoritárias. Há uma diferença.” -, acreditava que Jogos Vorazes era uma história “importantíssima”, com a capacidade de atingir um público mais jovem e incentiva-lo a se tornar politicamente ativo:
“Ninguém me pediu para fazer [a audição]. Não me ofereceram [o papel]. Eu gosto de ler roteiros, e esse capturou a minha paixão. Eu escrevi uma carta para eles. O papel do presidente tinha , talvez, uma fala no roteiro original. Talvez duas. Não importava. Eu achei que era um filme incrivelmente importante, e eu queria ser parte dele. Eu pensei que poderia acordar um eleitorado que estava dormente desde os anos 1970. Eu não tinha lido os livros. Para ser verdadeiro, eu não os conhecia. Mas mostraram minha carta para o diretor, Gary Ross, e ele achou que seria uma boa ideia eu interpretá-lo. Ele escreveu essas cenas maravilhosamente poéticas no jardim de rosas, e elas formaram a mentalidade e a esperteza de Coriolanus Snow”.
Para melhor aproveitar Donald Sutherland, o papel do vilão foi aumentado e revisado, lhe rendendo muitas falas icônicas escritas diretamente para os filmes, que não estavam no livro, e muitas cenas adicionais que acrescentaram várias camadas de interesse à história original – particularmente em “Em Chamas”, o filme mais bem avaliado da série (e considerado por muitos críticos um dos raros casos em que a adaptação é comparável, ou mesmo superior, ao material original). Boa parte dessa qualidade reside no fato de que, ao contrário do livro, que é contado inteiramente por Katniss, o filme inclui várias cenas com Snow, e mostra o raciocínio e a política do presidente ao longo dos eventos.

Sobre a colaboração com Sutherland, Gary Ross declarou:
“Essa é a relação que você quer entre um ator e um director, onde se dá e se recebe. É colaborativo. É uma pessoa oferecendo algo para a outra, que recebe, extrapola, corre com ela, devolve para o ator, que então me dá a cena de volta… é desse jeito que o cinema melhor funciona.”
Cartas do Jardim de Rosas – o texto que construiu o vilão:
A carta de Donald Sutherland – e mesmo o ato de escrevê-la – é particularmente interessante em vista da prequela focada em Snow, escrita e publicada uma década mais tarde. As similaridades – em estilo, perspectiva e ação – são tantas que muitos suspeitam que a história, o passado e a filosofia do personagem foram inspirados diretamente por Sutherland e sua carta. Muitas colocações feitas por Sutherland estão no coração da história de “A Cantiga dos Pássaros e das Serprentes”: “Poder absoluto lhe deixa com muita tesão. […] Não, acredito eu, Coriolanus Snow”; “Ele era, provavelmente, um homem brilhante que sucumbiu ao canto da sereia do poder”; “O mal se parece com a nossa compreensão da história dos homens para quem olhamos. Não é o que vemos: é o que nos levaram a acreditar.” Todas soam particularmente proféticas quando, uma década mais tarde, “Cantiga…” contaria a história do ambicioso, promissor e brilhantemente inteligente Coriolanus Snow de 18 anos, que teve todas as oportunidades para se tornar uma pessoa diferente, mas foi seduzido pelo caminho do poder e do autoritarismo – abandonando a mulher por quem se acreditava apaixonado no processo, quando percebe que seu verdadeiro amor não era Lucy Gray, mas o controle absoluto.

Mais ainda, a própria atitude de Sutherland é assustadoramente parecida com a de seu personagem. Ao longo de toda a narrativa de “Cantiga…”, Snow escreve ensaios e pequenas dissertações sobre poder, controle e contrato social (o livro explora a filosofia de Rosseau) na tentativa de avançar em sua carreira acadêmica e chamar a atenção da Idealizadora de Jogos Volumnia Gaul – criadora da frase “E que a sorte esteja sempre em seu favor.” Estaria Suzanne Collins posicionando a si mesma como a Dra. Gaul?
A carta escrita por Donald Sutherland foi tornado pública em 2012, junto com o DVD do primeiro filme, em um segmento intitulado “Cartas do Jardim de Rosas”.
Leia-a na íntegra aqui:

Caro Gary Ross:
Poder. É sobre isso? Não é? Poder e as forças que são manipuladas por homens poderosos e burocracias tentando manter o controle e a posse desse poder?
Poder perpetra guerra e opressão para se manter até que finalmente desmorona com o próprio peso burocrático e afunda nas páginas da história (exceto no Texas), deixando lições que precisam ser aprendidas por aprender.
Poder corrompe, e, em muitos casos, poder absoluto lhe deixa com muita tesão. Clinton, Chirac, Mao, Mitterrand.
Não, acredito eu, Coriolanus Snow. A obsessão dele, a paixão dele, é o seu jardim de rosas. Há uma rosa chamada Sterling Silver que é lilás em cor, com a fragrância mais extraordinariamente poderosa – incrivelmente bonita – que eu amava nos anos setenta, quando ela primeiro surgiu. Eles já fizeram várias versões dela desde então.
Eu não queria lhe escrever até eu ter lido a trilogia, e agora eu li: rosas são de grande importância. E os olhos de Coriolanus. E o seu sorriso. Esses três elementos são vibrantes e vitais em Snow. Tudo o mais é, de maneira geral, perfeitamente imóvel e brutalmente contido. Que deleite ela [Katniss] lhe dá. Ele a conhece tão perfeitamente. Nada, absolutamente nada, o surpreende. Ele vê e entende tudo. Ele era, provavelmente, um homem brilhante que sucumbiu ao canto da sereia do poder.
Como você pretende dramatizer a narrative interna que existe na cabeça de Katniss, que descreve e consistentemente atualiza a relação dela como o Presidente que é tão ubíquito na cabeça dela? Com uma calma onisciente, ele a conhece perfeitamente. Ela sabe que ele conhece, e ela sabe que ele fará o que quer que seja necessário para manter seu poder, por que ela sabe que ele acredita que ela é uma ameaça real ao frágil controle que ele tem desse poder. Ela é mais perigosa que Joana D’Arc.
O diálogo / monólogo interno dela define Snow. É aquele velho dilema teatral: você não pode “Interpretar” um rei, você precisa que todo mundo no palco esteja sempre dizendo um para o outro, e portanto para a audiência, “Lá vai o Rei, ele não é complicado?, tão malvado, tão adorável, tão benevolente, tão cruel, tão brilhante ele é!” A ideia dele, a definição dele, a percepção que a audiência tem dele, é primariamente instilada pelas observações de outros, e uma vez que a ideia está definida, a visão que a audiência tem do personagem é praticamente imutável. E no caso de Snow, essa definição, é claro, vem de Katniss.
O mal se parece com a nossa compreensão da história dos homens para quem olhamos. Não é o que vemos: é o que nos levaram a acreditar. Simples assim. Olhe para o rosto de Ted Bundy sem saber o que ele fez, e depois que ficar sabendo.
Snow não parece malign para as pessoas na Capital de Panem. Bundy não parecia maligno para aquelas garotas. Minha esposa e eu estávamos dirigindo pelo Colorado quando ele escapou da prisão lá. O aviso no radio era constant. “Não dê carona para nenhum homem jovem. O fugitive aparenta ser o jovem mais agradável imaginável.” A malignidade de Snow aparece na forma da ameaça complacentemente confiante que está sempre presente em seus olhos. Sua quietude resoluta. Você viu um filme que fiz anos atrás? “O Olho da Agulha”. Aquele cara tinha algo do que estou procurando.
A mulher que vivia na mesma rua que nós em Brentwood veio fazer uma pergunta para a minha mulher quando ela estava deixando as crianças no colégio. Aquela mulher e o marido tinham visto o filme na noite anterior, e o que ela queria saber era como a minha esposa conseguia viver com alguém capaz de interpretar um homem tão perverso. Os próximos um ou dos jantares foram divertidos, mas parte da minha mulher ainda se pergunta a mesma coisa.
Adoraria falar com você assim que possível, para estarmos na mesma página.
Todos eles acabam do mesmo jeito. Bem vindo à Flórida, tenha um bom dia!