Em “O lodo e as estrelas”, Ahmed Lutfi recupera o estilo Sherazade de contar histórias para reunir narrativas do mundo pré-islâmico
Tudo é invenção. Mais que isso, tudo que existe é imaginação porque a matéria do que chamamos de real é somente aquilo que recortamos do que imaginamos e inventamos. As invenções, porém, não estão isentas de seus tempos, contextos, preconceitos e projetos de colonização do pensamento. Quando falamos do que chamamos de “oriente” ou “mundo árabe”, por exemplo, partimos não de uma experiência desses lugares, mas de uma invenção do oriente que foi cunhada por Edward Said de “Orientalismo”, termo que deu nome à sua obra.
Neste sentido, as análises contemporâneas que partem da decolonialidade, ou seja, que buscam desfazer essa chave de leitura colonial, nada mais são que escritas de desinvenção que buscam recuperar as rédeas da História e trazê-las novamente para dentro de suas culturas e contextos. E este é o maior mérito de “O lodo e as estrelas”, de Ahmed Lutfi: ele faz uso da tradição milenar do Oriente Médio de contar histórias para recuperar histórias que foram esquecidas.

“O lodo e as estrelas” é uma coletânea de contos do escritor Ahmed Lutfi, inédita no Brasil, publicada pela Editora Rua do Sabão e com tradução direta do árabe por Mohamed Elshenawy. Lutfi é médico, nascido em 1996 na província de Xarquia, localizada no Egito; sua primeira obra, Tayfaha, foi lançada recentemente, em 2020.
Em 2023, publicou “O lodo e as estrelas”, que foi reconhecido com uma indicação ao Prêmio Literário Sheikh Zayed, no mesmo ano, na categoria Jovem Autor. E não foi à toa: quem mergulha nas páginas do livro tem a impressão de que faz uma viagem. Mas uma viagem para onde?
Se Sherazade é a contadora de histórias mais famosa do mundo, através de suas narrativas para escapar da morte pelo Rei Shariar, Lutfi recupera esse procedimento, mas agora com uma diferença: seu objetivo é recuperar, reunir e organizar histórias que se passam no período pré-islâmico, ou seja, no período anterior ao surgimento do profeta Maomé, que instaura e divulga a religião muçulmana.
Este período, que vai aproximadamente até o século VI, é uma época riquíssima da cultura árabe – momento em que há uma grande instabilidade dos poderes naquele território e, por isso, uma imensa troca cultural que dá a ver não apenas dezenas de povos, crenças e tradições, mas também como elas se atravessam entre si.
Para dar conta dessa pluralidade e volatilidade cultural, em “O lodo e as estrelas” Ahmed Lutfi opta por dar às suas histórias quase a mesma estrutura das histórias de Sherazade: elas são contadas de alguém para alguém, de modo que todas elas se assemelham a parábolas, ou seja, narrativas do passado que servem não apenas como ensinamento, mas que retratam a história de um lugar e de um tempo, ainda que as histórias sejam fabulosas.
Neste caso, Lutfiparte de histórias que diz ouvir de um professor chamado Abdul Malik que, todas as quintas-feiras, as narrava para o autor, mas só autorizou que elas fossem publicadas após sua morte. Como uma espécie de “prólogo moldura” – estrutura que faz com que todas as histórias estejam contidas nesta primeira história, Lutfimonta o que se chama de efeito droste, presente também no brinquedo chamado de boneca russa: uma história está contida dentro da história que está contida dentro da história, e assim por diante.
Leia também: “O lodo e as estrelas”, Ahmed Lutfi: livro egípcio que recupera narrativas tradicionais árabes

A história que abre o livro, “Preso nas Montanhas”, começa justamente com esse formato: Malik conta para Lutfiuma história que se inicia assim: “Mufadda Ibn Amliq Al-Tasmi disse:” E, nessa fábula, ele diz:
“Eu sou a única testemunha restante, aquele que viu todas as fases da história, talvez por isso a morte não tenha me atingido”.
A figura deste último sujeito, deste narrador, deste que conta porque ainda vive ou conta porque já vive, porque sobrevive, narra para não morrer e reflete até sobre a própria existência diante da morte:
- O que significa a morte?
- Uma pessoa cujo tempo acaba e você não a vê mais depois disso.
O tempo levou todos, e eu fiquei aqui, sozinho sobre essas duas montanhas. Por que a morte esqueceu de mim?”
Esta é a narrativa forte, triste e até cruel de Al-Tasmi, o filho de um rei que, uma vez bondoso, começa a se tornar cruel e oprimir diferentes povos que estavam sob seu reinado. Ao acompanhar um soldado fiel e escudeiro de seu pai, Al-Tasmi acreditava estar aprendendo sobre política – e, de fato, estava, do pior modo: ao ver a crueldade do pai, resolve se insurgir contra ele, mas percebe que a história não possui senso de justiça nem lógica. Traído, ferido e após perder todos que amava, se vê sozinho nesta montanha.
A história que dá título ao livro, “O lodo e as estrelas”, é uma das mais curiosas da obra: ela é narrada por dez camelas. Mais uma vez, temos a estrutura da história dentro da história, em que o professor conta a história de uma camela que conta a história. Neste caso, vamos acompanhando a vida de cada uma delas, até que uma morre e a história passa a ser narrada pela seguinte. Neste caso, elas estão acompanhando a busca dos tesouros de Caaba, um edifício que fica no centro da mesquita Masjid Al-Haram, em Meca.

A narrativa acompanha Lyad, jovem que herda de seu pai falecido dez camelas e algumas escravas. Na hora de sua morte, seu pai faz uma profecia: “o avô, o rei, virá até você e o fará rei”. Porém, essa herança era quase nada perto do que os outros parentes herdaram. Sem nada, ele passa a alugar as camelas para peregrinos atravessarem o deserto e os acompanhar na jornada, vivendo dos alugueis. Até que um sheik aluga as camelas para buscar um tesouro.
O excepcional das narrativas é que cada camela possui sua personalidade própria e narra a história de um ponto de vista diferente, formando uma espécie de mosaico de testemunhos que, no entanto, são feitos pelos animais que compunham aquela jornada, e não por seus protagonistas. Uma das camelas, a quarta, chega a dizer:

“Quem protege o ser humano da infelicidade senão ele mesmo? Quem cria a felicidade senão o coração humano? Dele e para ele, quem tem o poder de mudar os destinos? Como uma montanha pode desencorajá-lo e entristecê-lo quando você não possui força? Como?”
Outros dois pontos marcantes da obra de Lutfi é que as histórias não estão localizadas em apenas uma parte do território conhecido como “mundo árabe”. Muitas delas se passam onde hoje se localiza o Iêmen, mas também em diversas outras como a Síria, a Arábia Saudita, o Egito, o Marrocos… todas regiões que, na época, recebiam outras nomeações e tinham diversos povos como habitantes: árabes, judeus, persas…
Além disso, as histórias também avançam no tempo, de modo que, nas últimas, podemos perceber os ecos da presença de Maomé – que, primeiramente, é visto como uma figura inofensiva, mas depois passa a ameaçar o poder de reis locais. Acompanhamos, inclusive, histórias em que súditos de um rei passam a seguir o exército de Maomé, se juntando aos povos muçulmanos que começavam a se formar.
Dessa forma, de maneira leve, como quem senta diante de alguém para contar uma história, mas também pesada, com histórias sobre traições, mortes, assassinatos e violências entre parentes e amigos, “O lodo e as estrelas” nos conta sobre um mundo em plena convulsão cultural, política, social. Além disso, o livro contém também narrativas fabulares de deuses de outros mundos, incluindo intervenções – talvez – de gênios e figuras que, nos sonhos, revelam passado, presente e futuro.
“O lodo e as estrelas” traz um mundo pré-islâmico repleto de luzes, aprendizados ensinamentos, ao contrário do termo usado pela cultura islâmica para retratar essa epóca: “Jahiliyya”, que significa “período da ignorância”, e marca os tempos antes da revelação do Alcorão. Ao invés disso, estamos diante de uma obra sobre mundo pulsante, repleto de vida, cujas histórias precisam ser conhecidas e espalhadas.