Em “O diário de uma bipolar: a vida nos extremos”, escritora Georgia Tannuri destrincha a vida de uma mulher com transtorno bipolar
Escrever a vida. Nada mais desafiador do que a tarefa de descobrir o que é a vida e o que nela é matéria narrável. O que nela é digno de ser traçado em palavras e o que deve ser descartado pela memória do papel. O que colocamos nessa escrita: fatos ou sentimentos?
Revelamos o que vivemos na vida cotidiana, estudo, trabalho, viagens, ou viajamos para dentro da gente e nos debruçamos em relacionamentos, medos, angústias? “O diário de uma bipolar: a vida nos extremos”, de Georgia Tannuri, faz dessa tarefa um exercício quase infinito e impossível.

“O diário de uma bipolar: a vida nos extremos”, é um livro da escritora e perita criminal da polícia civil Georgia Tannuri. Estimulada por uma amiga e por sua psicóloga, resolveu organizar seus textos aleatórios em uma escrita da própria vida, uma espécie de diário. O resultado disto é este livro que é ficcional, que tem suas personagens inventadas e imaginadas, mas nem tanto assim.
O livro conta a história da Giovanna, uma personagem que logo no começo do livro passa por uma crise de ansiedade extrema e é internada pela sua família em uma clínica psiquiátrica. A partir daí, e do esfacelamento de sua vida, entramos em contato com toda a história de Giovanna, que busca narrar sua vida que, enquanto passa, vai delineando um momento marcante e delicado: a descoberta de que ela tem transtorno bipolar afetivo.
Este transtorno, que atinge uma pequena, mas significativa parcela da população, é considerado uma doença em que as pessoas afetadas por ele passam por momentos que oscilam entre a depressão e a euforia, passando por uma instabilidade de sensações e sentimentos que nem sempre são fáceis de lidar, alternando entre dois períodos conhecidos como a mania e a depressão.
Logo de cara, este é o primeiro desafio que Giovanna vai enfrentar para tentar seguir em frente após esse surto inicial: entender o que tem, carregar as sequelas do que viveu e apontar para um futuro, como ela própria diz:
“As sequelas de todas as suas crises pessoais, os traumas, surtos e a internação a tinham transformado em uma mulher amedrontada. Ela tinha medo de tudo. De dirigir, de andar de bicicleta, de caminhar sozinha e até de pegar ônibus. A impressão que passava é que havia tanta dor dentro dela que em qualquer lugar que se encostasse, uma de suas feridas seria atingida.”
É a partir desse fragmento que trago minha análise: Georgia, ao invés de tentar controlar sua bipolaridade para escrever sua vida, faz uso daquilo que chamam de transtorno ou doença para compor a sua cura, ou seja, um relato livre, forte e potente sobre o que é viver como uma bipolar. E mais, não apenas contar sua própria história, mas imaginar essa história em uma outra pessoa, o que significa dar também a Giovanna, sua heroína, uma autonomia de pensamento, de escolha de vida, ainda que esta seja fatalmente atrelada a sua.
Talvez a gente pudesse pensar numa proximidade da figura Giovanna com o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, que em seu Livro do Desassossego relata a vida de um guarda-livros que, no fim das contas, tem muito de Pessoa, mas não é propriamente ele. Porém, em “O diário de uma bipolar: a vida nos extremos”, Georgia Tannuri vai buscar outras fontes narrativas. Logo no começo do livro ela cita duas frases que de alguma maneira norteiam a trajetória de sua personagem:
“A vida é combate que se aos fracos abate, aos fortes e aos bravos só pode exaltar”
Gonçalves Dias
“O que não provoca minha morte me fortalece”.
Friedrich Nietzsche
Assim, no caso de Georgia, o que temos é uma completa justaposição entre a vida de sua personagem e a escrita da obra. Estamos diante de um livro escrito através de um fluxo incessante de fatos, sentimentos, memórias, casos, planejamentos, ansiedades, relacionamentos, tudo lançado diante de nós como um impulso.
Através de uma voz que se expressa com clareza, e parece ter uma memória imaginativa infinita, a narrativa quase não contém diálogos, mas se sustenta nessa narrativa que nunca acalma, nunca arrefece, nunca descansa, mas avança, avança, avança e parece sempre ter mais a dizer.
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Um dos elementos mais interessantes é que Georgia optou por, apesar de ser uma obra estritamente sobre Giovanna, trazer em cada capítulo um nome diferente, ou seja, ela entende que Giovanna não é um ser isolado do mundo, mas se compõe com e para outras pessoas. Dessa forma, Georgia coletiviza o gesto da existência singular da protagonistas para as demais figuras que atravessam seu caminho.
Conhecemos o marido Genilson, pelo qual Giovanna sente uma atração que parece não cessar, mesmo quando ela descobre as ações abusivas e o desejo de controle do marido sobre sua vida. O filho Vítor, homem gay, parte da comunidade LGBTQUIAPN+, que não é aceito pelo seu padrasto e passa por uma vida de aproximações e afastamentos com a família. A mãe, Laís, a grande megera e pedra no sapato de Giovanna, mas que, de alguma maneira, é quem sustenta o castelo todo do passado da personagem. A vizinha Augusta, que apesar de trair Giovanna diversas vezes, causa nela sempre uma aproximação estranha de quem não consegue se desapegar. E, por fim, o filho Henrique, que desde cedo parece ter o mesmo problema que a mãe, mas que acaba por se tornar um dependente químico, precisando de internação diversas vezes durante a vida.
Veja: Giovanna está diante de um carrossel de pessoas que entram e saem de sua vida, que compartilham com ela sua existência frente a sua bipolaridade. O que espanta é que, embora tenha demorado a ser diagnosticada, essa sensação de que havia algo estranho sempre foi pressentida, de acordo com suas oscilações, ansiedades, angústias e dores durante a vida. Essa consciência, inclusive, vai lhe dando a ideia de que os surtos, talvez, sejam também momentos de revelação e não necessariamente de perda:
“‘Seria o surto um momento de lucidez?’, pensava Giovanna, incessantemente, enquanto recordava seus surtos. Tudo passou a fazer mais sentido para ela, ou não seria mais lúcido o desejo de matar a mãe ou mesmo chamar de filhos da puta os gerentes do banco?”

Em “O diário de uma bipolar: a vida nos extremos”, Georgia Tannuri nos coloca diante de um personagem que está em processo de descoberta e aceitação. Aceitação de quem é e do que é. Do que tem e do que não. Do que pode e do que não pode. Do que fez e do que não fez.
E, enquanto descobre, vai vivendo histórias e aventuras que trazem alegrias e sofrimentos, mas que revelam a autonomia e a liberdade de perceber que a bipolaridade é, no fundo, uma condição que faz Giovanna ser quem é: essa pessoa livre, criativa, sem preconceitos, que luta dentro da polícia civil contra racistas, homofóbicos, que briga com o marido para proteger os filhos e que não tem medo de sofrer, têm medo, sim, de tudo que sente, mas não de sofrer, afinal, como diz o poeta Michel Deguy: “não é possível mudar a vida, nem de vida”.
Georgia não só percebe isso, mas escreve uma obra bipolar de uma pessoa bipolar com uma personagem bipolar. E faz isso com coragem, em um livro pulsante e incessante que nos conta, no fim das contas, sobre a diversidade de quem somos. “O diário de uma bipolar: a vida nos extremos” é um livro sobre ser e sobre poder ser.