Ex-escravos, Elisa e o seu pai, Julião, vivem na fazenda de Pio, apelidado de “Pai de Todos”. Certo dia, Carlos, filho de Pio, estupra Elisa. Para salvar a honra da filha, Julião a mata. Essa história, escrita por Machado de Assis, inspirou “Elisa em fuga: segundo ensaio sobre o terror”, em cartaz no Ágora Teatro, em São Paulo, com direção e dramaturgia de José Fernando Peixoto de Azevedo.
Nesta “peça-ensaio, que é também uma peça-filme”, a acareação é feita por uma atriz (Thaina Muniz) que narra a história machadiana enquanto avaliza outras vítimas. Todas negras. Em virtude disso, “voltar a cena” é uma frase dita muitas vezes durante o espetáculo. Talvez, como tentativa para encontrar a diferença na repetição, já que faz parte do processo artístico regressar à cena para procurar aquilo que ainda não foi revelado.

Como fundamento do jogo metalinguístico, José Fernando enxerta na montagem um videomaker-personagem, que ora age como opositor, ora como parceiro da atriz. Em praticamente todos os seus trabalhos – incluindo o primeiro ensaio sobre o terror, outra peça-filme desdobrada dos escritos de Machado de Assis – o diretor usa câmeras para duplicar a presença dos artistas e potencializar a ação dramática. No teatro, essa ideia da imagem como representante de algo que está ausente foi tratada pelo filósofo Francis Wolff e teorizada por Hans-Thies Lehmann em seu “Teatro pós-dramático”. O professor alemão, inclusive, entende o uso de câmeras no palco como parte de um esquema com a imaginação da plateia, pois cria-se um “vestígio da presença”.
É por meio das “imagens-resquícios” captadas durante o espetáculo que a história de violência contra o povo preto será colada, produzindo o efeito incômodo: os negros não tem espaço garantido em nenhum lugar, cabendo à imagem a idealização da própria matéria. Assim, a interação entre a atriz, o corpo ausente de Elisa e o videomaker-personagem embalam um dos momentos mais impactantes de “Elisa em fuga”, quando Thaina Muniz pede a plateia para ler trechos do conto. Enquanto isso, close-ups do seu corpo são exibidos em um telão. Em outro momento, ela afirma que não é Elisa, e sim uma atriz. Tal revelação joga com a nossa perspectiva, transforma o público em júri – ou testemunha – e faz a artista assumir um papel “ausente” na história, como se fosse a promotora do caso, já que o conto de Machado chama-se “Virginius (narrativa de um advogado)”.
O recurso televisual ainda projeta uma segunda instância na dramaturgia: a de uma opressão filmada, noticiada e ordinária. No dia 17 de março, dois PM’s agrediram e mataram um jovem durante uma abordagem, em São Paulo. Lucas de Almeida Lima, de 26 anos, ajudava um amigo a arrumar o carro quando os policiais militares consideraram sua atitude suspeita. Sem tempo para fugir, o jovem negro foi alvejado na calçada. Testemunhas filmaram parte da violência. Mesmo assim, nada garante a punição dos assassinos.
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Dividindo o mesmo contexto violento da época em que o conto fora escrito, o espetáculo aborda a fuga como um método constante de sobrevivência. Só que, ironicamente, Julião não fugiu depois do flagrante porque “o terror é branco e sua permanência entre nós é a única linha contínua de nossa história”. Entre as possíveis razões disso, podemos entender que o crime e a fuga espelham seus sentimentos instintivos, tais como a subserviência, gratidão e até mesmo a falta de opção. Daí, se voltar à cena do crime não implica na resolução, colocar em cena os vestígios do corpo de Elisa, de Lélia Gonzalez e Marighella – figuras destacadas durante a montagem – e da própria Thaina Muniz, inclusive, pode abrir novas rotas para que outros se mantenham vivos?
“Elisa em fuga: segundo ensaio sobre o terror” não vai dar a resposta. Há fuga porque existe perseguição. E a figura cristã de um “pai de todos”, tão fundida nas culturas colonizadas, revela o poder de quem persegue. Mas sendo esta uma “peça-ensaio, que é também uma peça-filme”, voltar à cena não basta. É o que resta.
Ficha Técnica
A partir do texto Virginius (Narrativa de um advogado), de Machado de Assis
Dispositivo de cena, dramaturgia e direção: José Fernando Peixoto de Azevedo
Atuação: Thaina Muniz
Câmera: Samurai Cria
Edição de imagens ao vivo: Soma
Trilha e música em cena: Agá Péricles
Apoio Técnico de vídeo: André Voulgaris
Produção: Corpo Rastreado – Anderson Vieira